ORALIDADE,
ESCRITA E LETRAMENTO: REFLEXÕES CONCEITUAIS EM TORNO DE UMA
PERSPECTIVA INTEGRADORA
Leandro Tadeu
Alves da Luz
RESUMO: Este texto tem o objetivo de expor e
discutir algumas das principais correntes teóricas que se dispõem a analisar a
relação entre oralidade, escrita e letramento, partindo de uma apresentação das
principais idéias relacionadas a estes conceitos e sua integração no ensino-aprendizagem
de línguas.
PALAVRAS-CHAVE: escrita; oralidade; letramento
ABSTRACT: This text aims to present and discuss some of the main theoretical
tendencies which study the relation between orality, writing and literacy,
departing from the presentation of the main ideas related to these concepts and
their integration to the teaching learning process.
KEYWORDS: writing; orality; literacy
0 – Introdução
Este trabalho tem como objetivo discutir, problematizar enfim a relação
entre oralidade, escrita e letramento. Para isso, pretendo buscar nas teorias
do letramento e numa visão sociointeracionista da linguagem os subsídios
necessários para tal discussão.
As pesquisas sobre a relação entre oralidade e escrita não representam
necessariamente um objeto novo que se vislumbra, pelo contrário, já é uma
discussão bastante difundida nos meios acadêmicos. Este trabalho visa, assim,
reunir elementos diversos advindos de trabalhos envolvendo essa temática com a
intenção de projetar para a prática da sala de aula de línguas uma visão de
interação e interdependência entre o texto oral e o texto escrito (cf.
Marcuschi, 2000) tanto em relação à produção quanto à recepção ou construção de
sentidos realizada pelo leitor ou pelo ouvinte; o que acarreta, quero crer, um
redimensionamento dos papéis dos interlocutores do discurso escolar[1]
bem como da própria prática pedagógica de se ensinar uma língua materna ou
estrangeira.
Por anos, o que parece comum nas aulas de Língua Portuguesa e Língua
Inglesa nos ensinos fundamental e médio é uma supremacia do texto escrito em
detrimento da oralidade. No ensino de língua materna, vejo este fenômeno como
resultante de uma crença antiga bastante difundida na escola dita tradicional
de que a norma culta é que deve ser ensinada na escola e que esta só se
encontra nos textos escritos e, preferencialmente, pelo menos até algum tempo
atrás, nos gêneros literários, tomados muitas vezes como modelos de correção e
de bem escrever. A oralidade, pelo que compreendo, o aluno podia aprender em
qualquer ambiente, não sendo da escola, a responsabilidade de discutir a
organização estrutural ou o contexto de produção, nem os objetivos e funções
dessa modalidade textual. Em relação ao ensino de língua estrangeira, acredito
que o texto escrito predomina devido, primeiramente, a uma lacuna na formação
deste professor que, por vezes não se sente seguro para falar a língua que
ensina. Outros fatores, como superlotação das salas, escassez de material
didático, falta de programas de formação continuada entre outros contribuem
para esse quadro de empobrecimento da linguagem que acaba restrita ao papel. O
que vale questionar, diante desse quadro é se, já que a escola vem priorizando
a linguagem escrita, se ela o tem feito de forma eficiente, socialmente relevante
e significativa para o aluno ou se tem apenas servido de pretexto para se
ensinar gramática ou tradução, como se fazia há mais de cem anos atrás (cf.
CELANI, 1997).
1. O campo de pesquisa sobre escrita
Sabemos que a língua escrita nasceu com os sumérios há aproximadamente
cinco mil anos (CAGLIARI, 1999). O que parece representar uma longa trajetória
na historia é, na verdade, bastante curta se pensarmos que o homo sapiens
habita a terra há mais de um milhão de anos e que, durante todo esse tempo ele
se comunicou via fala, certamente. Fica ainda mais curta se pensarmos que um
processo de alfabetização em massa só foi realmente acontecer no fim do século
XX (GRAFF, 1995). Ainda em relação ao surgimento da escrita, vale considerar o
que afirma Rego (1992, p. 108) sobre o caráter funcional dessa escrita, segundo
a autora
Sabemos que
historicamente as escritas surgiram funcionalmente. Os sistemas gráficos sejam
de natureza pictográfica, ideográfica, silábica ou alfabética não foram
inventados para deleite da mente, mas sim para atender a determinados usos de
linguagem dentro das sociedades, tais como servir de apoio à memória
favorecendo o aparecimento de arquivos comerciais, de leis e de princípios
governamentais que podiam resistir à passagem do tempo.
Apesar de tão mais jovem, a escrita representa uma verdadeira revolução
na história da humanidade, é possível dizer que o acúmulo de conhecimento
humano só se tornou possível graças a essa invenção. Na verdade, não falo de
escrita num sentido restrito, ou seja, a escrita alfabética realizada nesta ou
naquela língua, mas sim, da idéia abrangente de se registrar de forma
permanente e durável fatos, idéias, projetos, sonhos, enfim, tudo que antes
apenas se pensava e se dizia. Talvez daí resulte sua supremacia quando se fala
em ensino/aprendizagem de línguas.
Acredito ser importante observar a constituição do campo de pesquisa
sobre escrita, de acordo com Gnerre (2003), pensar sobre tal questão pode gerar
alguma polêmica, poderíamos pensar que o campo de pesquisa sobre escrita tem se
expandido nas últimas décadas simplesmente pela crescente preocupação global
com questões relacionadas à alfabetização e ao letramento. Por outro lado, como
sugere o autor, numa visão um tanto mais crítica, perceberíamos que as pesquisas
sobre escrita ganharam destaque como forma de tecnologia sucateada oferecida
aos ditos “países de terceiro mundo” quando os detentores do conhecimento e da
tecnologia de ponta já passam a entender a escrita como obsoleta. Penso que
essa questão merece cuidadosa atenção, entretanto, pelo teor deste trabalho,
opto por não ir adiante nessa discussão. Gostaria somente de transcrever o que
postula Gnerre (2003, p. 42) sobre a questão do campo de estudos sobre escrita.
Segundo o autor
O campo de estudos desenvolveu-se
a partir de uma visão evolucionista e mítica da escrita. Evolucionista porque
opera a partir do pressuposto da existência de uma série linear de estágios na
história da escrita, que, iniciando com símbolos “pictográficos” e
“ideográficos”, alcança o nível mais alto de abstração com a escrita
alfabética; mítica porque assume que é a escrita, e em especial a escrita
alfabética, que representa um avanço substancial numa perspectiva cultural e
cognitiva.
Ainda sobre o campo de pesquisa da
escrita, Garcez (1998) apresenta três paradigmas de estudos sobre a escrita,
sendo eles: a) experimental/positivista: “[pesquisa] voltada essencialmente
para o produto, procura conhecer o crescimento da qualidade do texto escrito
por meio, principalmente, do método que utiliza pré-teste e pós-teste” (p. 24);
b) cognitivista: “[pesquisas] que tentam desvelar os mecanismos mentais do
sujeito, as etapas da escrita, as relações entre as diversas variáveis que
interferem no processo de produção do texto” (p. 24) e; c) sociointeracionista:
em que “o conhecimento é mediado pelo par mais desenvolvido, que serve de
suporte temporário e ajustável, funcionando numa zona sensível de aprendizagem”
(p. 42).
Dentro do paradigma de pesquisas denominado por Garcez (1998) como sociointeracionista,
uma definição de escrita é sugerida por Bortolotto (2001, p. 10), baseando-se
em Geraldi (2002). Assim, para a autora “a escrita (...) é produto da atividade
de um sujeito histórico, situado numa comunidade discursiva, o qual tem o que
dizer, por que dizer, como e para quem, que conhece e seleciona as
estratégias”.
Garcez (1998) e Gnerre (2003)
parecem concordar com a existência de uma visão evolucionista das pesquisas
sobre a língua escrita; principalmente quando Garcez (1998, p.23) afirma que
A pesquisa científica
sobre a escrita tem evoluído de uma visão centrada no produto para o enfoque
dos processos individuais do sujeito cognitivo que produz o texto e, mais
recentemente, para o caráter interativo da produção do texto, ou seja, para os modos de
participação do outro nessa produção.
Em relação ao ensino-aprendizagem de escrita realizado na escola, quero
chamar a atenção para o que afirma Lopes (1997, p, 29), de acordo com a autora
Tem-se comumente uma
prática de escrita que não leva em conta a multiplicidade dos diferentes tipos
de escrito e, portanto, requer dos alunos a escrita de composições que não
inclui a especificação do tipo de texto, o esclarecimento de aspectos
processuais nem a contextualização dos textos (definição de destinatário, de
objetivos concretos e de mecanismos de circulação social de textos), uma vez
que o aluno escreve para que o produto final seja corrigido e classificado pelo
professor.
Essa diferenciação entre escrita e
escrito rapidamente apontada por Lopes (1997) é retomada por Rojo (2001), que
relaciona escrita à entidade textual genérica e escrito ao aspecto gráfico da
língua. Ao falar da relação que se estabelece entre essas categorias, a autora
(2001, p. 53) afirma que
A partir do momento em
que, com a invenção da imprensa, o autor e o escriba; a grafia e o texto; o
escrito e a escrita fundiram-se e confundiram-se, as relações entre esses
elementos (a fala, o escrito e a escrita) também se tornaram complexas,
exigindo um maior refinamento de análise, nem sempre encontrado quando se fala
da escrita e de seu processo de apropriação pelo aprendiz, na relação com a
oralidade.
Sobre a avaliação do texto do aluno feita pelo professor, assunto também
trazido por Lopes (1997) na citação
acima, Suassuna (1995, p. 46) postula que
Pouco
se avançará enquanto a avaliação estiver concentrada no produto (texto) e não
no processo (ato de redigir), ou enquanto visar apenas à correção ortográfica e
gramatical, escamoteando os aspectos textuais (e mais fundamentais) do
exercício da escrita
Um pouco mais adiante a autora (1995, p. 52) comenta sobre a matemática
injusta das correções textuais, afirmando que
Quem de
nós escapou de ter uns pontos subtraídos da redação por causa de um S, um Z, um
Ç? Matemática esquisita, por sinal; para cada erro, perdíamos um ponto, para
cada acerto devíamos ganhar um. É uma conta desigual e a escola não soma a
favor do aluno
Sobre estas questões de correção textual, Geraldi (2002, p. 136)
apresenta uma distinção entre produção de texto e redação; para o autor, a
redação é feita para a escola e a produção de texto acontece na escola, mas não
precisa se limitar a ela. O que parece existir é uma supremacia da redação, o
que certamente contribui negativamente para o desenvolvimento das capacidades
de expressão escrita do aluno. Um problema apontado por Geraldi (2002) sobre a
correção do texto escrito diz respeito ao posicionamento tomado pelo professor.
Segundo o autor (2002, p. 143) “o grande problema é que o leitor de redações é
sempre a função-professor e não o sujeito-professor”.
Ainda sobre o campo de pesquisa da escrita, Signorini (2001, p. 107)
afirma que
Uma questão subjacente
aos estudos sobre escrita no campo aplicado tem sido a das aporias do conceito
de escrita herdado das tradições lingüísticas fundadas na noção de língua
enquanto unidade sistêmica estável que se contrapõe à fala enquanto
multiplicidade também sistêmica, porem aberta e instável (a dicotomia
saussureana langue/parole e seus desdobramentos)
Pretendo expandir a discussão sobre essa relação por vezes dicotômica,
por vezes interdependente entre oralidade e escrita no capítulo que se segue
2. Pesquisas sobre a relação oral/escrito
Seria redundante insistir na importância da implementação da língua
escrita para o mundo, também não pretendo aqui nenhuma defesa da oralidade. A
esse respeito, concordo com o que postula Tfouni (1995, p 19), segundo a autora
“A relação entre a escrita e a oralidade não é uma relação de dependência da
primeira à segunda, mas é antes uma relação de interdependência, isto é, ambos
os sistemas de representação influenciam-se igualmente”.
É preciso entender, antes de mais nada, que oralidade e escrita são
“atividades comunicativas e práticas sociais situadas (...) em ambos os casos
temos um uso real da língua” (MARCUSCHI, 2000, p. 21).
Ao refletir
sobre uso real da língua, sou levado a pensar em situação de produção e de
comunicação. Nessa perspectiva, posso entender comunicação como dialogicidade
no sentido bakhtiniano (1997). Acredito, desse modo, ser importante destacar o
que Smolka (1993, p. 41), analisando o pensamento de Vygotsky sobre oralidade,
fala egocêntrica ou monológica, fala interna e escrita, afirma. Segundo a
autora
A fala externa é a fala para os
outros. Sua estrutura é estendida, mas pode se abreviar ou ser predicativa
dependendo da situação e conhecimento comum entre os interlocutores. A fala
interna é a fala para is. Sua estrutura é abreviada e predicativa porque o
assunto é sempre conhecido pelo sujeito. Já a fala egocêntrica passa por vários
estágios que precedem o desenvolvimento da fala interna: da extensão à
abreviação, ela é mediação no percurso da internalização da fala social,
marcando a passagem fala-para-o-outro/fala-para-si e a emergência das funções
planejadora e auto-reguladora. Quanto à escrita, esta implica a deliberação e a
maior explicitação para uma audiência imaginária (é fala externa?) enquanto é
monológica (fala para si? Solitária?) na sua produção. Deste modo, Vygotsky
mostra que a forma escrita de linguagem e a fala interna são formas monológicas
de fala, com funções específicas, enquanto que a forma oral é geralmente
dialógica.
O que se observa na afirmação acima é uma visão dicotômica da relação
fala/escrita. A autora, ao citar Vygotsky reafirmando que a fala é dialógica e
a escrita monológica, reforça uma visão de antagonismo e rivalidade que vai
contra o que hoje se coloca como continuum entre oralidade e escrita.
Nesse sentido é que vale observar as contribuições trazidas por certas
correntes teóricas.
Da pesquisa sobre a relação oralidade/escrita, primeiramente, percebemos
uma visão bastante centrada no código e na imanência do fato lingüístico, essa
corrente de lingüistas, dentre eles Bernstein (1971), Labov (1972) e Ochs
(1979) entre outros (cf. Marcuschi, 2000) defendia a perspectiva da dicotomia,
segundo a qual o oral e o escrito não só são diferentes, mas como também
antagônicos, como representa o quadro 1, retirado da obra “Da fala para a
escrita: processos de retextualização” de Marcuschi, lançado pela Editora
Cortez em 2000:
FALA
|
ESCRITA
|
contextualizada
|
descontextualizada
|
dependente
|
autônoma
|
implícita
|
explícita
|
redundante
|
condensada
|
Não-planejada
|
planejada
|
imprecisa
|
precisa
|
Não-normatizada
|
normatizada
|
fragmentada
|
completa
|
Como conseqüência desses estudos é que emerge a ênfase no estudo da norma
culta padrão, daí decorre o desprezo pela oralidade, que representava o desvio,
o “não-normatizado”, o erro que deve ser evitado.
O que me parece bastante negativo em relação ao ensino/aprendizagem de
línguas é o fato de que, nessa perspectiva, o bom aluno, aquele que escreve
bem, é sempre aquele que bem dominar a norma culta. O aluno se sente assim,
pressionado a escrever de acordo com uma norma rígida e complexa, o que não
parece motivador e nem lhe permite a ousadia da criação, sem a qual o texto não
tem vida própria, assim o aluno deixa de ser autor e passa a ser copista ou
escriba.
Marcuschi (2000) chama de “visão culturalista” uma segunda corrente de
estudos que se opõe de certa forma a esta primeira. Essa abordagem,
desenvolvida principalmente por antropólogos, psicólogos e sociólogos, observa,
sobretudo as práticas orais e escritas, tecendo análises de cunho cognitivo e
epistemológico. Fazem parte desta corrente Walter Ong (1982), Scribner (1997) e
Olson (1977) entre outros. Sobre as características atribuídas à fala e à
escrita nessa abordagem, gostaria de apresentar um segundo quadro também
retirado da obra de Marcuschi (2000) acima descrita:
CULTURA ORAL
|
CULTURA ESCRITA
|
Pensamento concreto
|
Pensamento abstrato
|
Raciocínio prático
|
Raciocínio lógico
|
Atividade artesanal
|
Atividade tecnológica
|
Cultivo da tradição
|
Inovação constante
|
Ritualismo
|
Analiticidade
|
Os estudiosos dessa corrente pensam a escrita como impulsionadora do
avanço cognitivo dos indivíduos. Uma vez mais se supervaloriza a escrita, dessa
vez, no entanto, fala-se não do texto empírico, mas de sua estruturação macro:
psico-socioeconômico-cultural.
Uma terceira corrente, defendida no Brasil por Kleiman (1995), Bortoni
(1992, 1995) e Soares (1986), talvez intermediária entre as duas aqui
apresentadas, chamada por Marcuschi (2000) de “variacionista”, observa fala e
escrita em processos educacionais. Não se trata mais de dicotomizar, mas sim de
se fazer uma observação rigorosa da língua em suas variações dialéticas e
sociais. Do texto de Marcuschi (2000) trago o seguinte quadro:
FALA E ESCRITA APRESENTAM
Língua padrão
|
Língua não-padrão
|
Língua culta
|
Língua coloquial
|
Norma padrão
|
Normas não-padrão
|
Finalmente, podemos chegar a uma corrente teórica que trata oralidade e
escrita como duas modalidades e não dois dialetos, como sugere a corrente
apresentada anteriormente. Basicamente dialógica e chamada por Marcuschi (2000)
de “sociointeracionista”, apresenta as seguintes características
FALA E ESCRITA APRESENTAM
Dialogicidade
|
Usos estratégicos
|
Funções interacionais
|
Envolvimento
|
Negociação
|
Situacionalidade
|
Coerência
|
Dinamicidade
|
Apesar de
apresentar como vantagens em relação às anteriores a ausência de preconceitos e
de ideologias excludentes, essa corrente carece de elementos explicativos
quanto aos fenômenos sintáticos e fonológicos, por isso, segundo Marcuschi
(2000, p. 33)
A proposta geral, se concebida na
fusão com a visão variacionista e com os postulados da Análise da Conversação
etnográfica aliados à Lingüística de Texto, poderia dar resultados mais seguros
e com maior adequação empírica e teórica. Talvez seja esse o caminho mais
sensato no tratamento das correlações entre formas lingüísticas (dimensão
lingüística), contextualidade (dimensão funcional), interação (dimensão
interpessoal) e cognição no tratamento das semelhanças e diferenças entre fala
e escrita nas atividades de formulação textual-discursiva.
O
que Marcuschi (2000) parece propor enfim e chama de “visão interacionista” é,
na verdade, a junção de conceitos de várias correntes teóricas. Assim, fica
realmente possível abranger todas as peculiaridades específicas da relação
oral/escrito. O que fica claro é a incapacidade de se esgotar com uma abordagem
teórica todo o entendimento desse complexo emaranhado de fatos sociais,
culturais e cognitivos chamado língua que se manifesta em textos escritos e
orais.
Marcuschi
(2001, p. 47) em outro trabalho intitulado “Investigando a relação oral/escrito
e as teorias do letramento”, organizado por Signorini (2001) apresenta uma
síntese dos estudos sobre essa relação, segundo o autor:
a)
Não
há uma dicotomia real entre fala e escrita, seja do ponto de vista de suas
práticas sociais ou dos fenômenos lingüísticos produzidos;
b)
Fala
e escrita são realizações enunciativas da mesma língua em situações e condições
de produção especificas e situadas;
c)
Letramento
é uma prática social estreitamente relacionada a situações de poder social e
etnograficamente situada.
Em relação ao
item b) acima proposto por Marcuschi, gostaria de acrescentar a afirmação de
Kadota (1999, p. 33), pois entendo que essa autora situa a distinção entre
oralidade e escrita exatamente quanto às situações e condições de produção.
Segundo a autora A fala tem o poder de
colocar a língua em permanente estado inaugural pela característica do
imprevisível contida em seu processo de exteriorização dos fatos da língua. É,
por isso, a responsável pela sua expansão.
Percebo que a
autora propõe que a fala e não a escrita, ou pelo menos mais que a escrita,
proporciona a evolução da língua; é ela a responsável pelas inovações, pelas
transformações que mais tarde poderão ou não serem absorvidas pela escrita.
Ainda sobre o
estudo da relação oralidade/escrita vale observar o que afirma Matêncio (2002,
p. 26), segundo a autora
No estudo da relação entre oralidade
e escrita, alguns autores trabalham com a hipótese de que há um continuum
entre as duas modalidades lingüísticas, pois, de sua perspectiva, uma distinção
entre as duas modalidades não daria conta dos elementos comuns ou exclusivos de
uma ou outra. Outros, acreditam que as modalidades são complementares e
estariam vinculadas a uma norma superior, de onde derivariam, o que explicaria,
segundo eles, situações em que uma modalidade é mais adequada que a outra.
Dentre as
marcas de distinção entre fala e escrita propostas pela autora, acredito
merecer destaque, na verdade, somente o aspecto físico. Matêncio (2002) afirma
que, enquanto a fala se dá por meio sonoro e é percebida pelo ouvido a escrita
se manifesta por meios de marcas em um espaço e é percebida pela visão,
possuindo maior durabilidade do que a fala. Outros traços como a questão do
tempo que se dispõe para elaboração de uma e de outra, ou em relação à situação
de produção, em que diríamos que a escrita é um processo solitário, elaborado e
a fala não, ou ainda o fato de que a fala se dispõe mais ao trato social
enquanto a escrita ao trabalho intelectual (cf. MATÊNCIO, 2002) são elementos
já anteriormente expostos nos quadro elaborados por Marcuschi (2001) e
entendidos como não suficientes para se compreender a complexidade da relação
oral/escrito.
3. Escrita e Letramento
Antes de dar
continuidade às discussões sobre a relação entre oralidade e escrita, gostaria
de, rapidamente, tecer alguns comentários sobre a relação entre escrita e
letramento. Baseado principalmente no que diz Gnerre (2003), posso tratar
escrita e letramento como dois processos diferentes, pelo menos em nível
conceitual. Segundo o autor
Entre as principais línguas européias
somente o inglês dispõe de uma palavra como literacy, que faz referência
de forma abstrata a todos os possíveis aspectos de envolvimento social e
individual com a prática de escrever. Em outras línguas dispomos de palavras como
écriture, schrift, escrita, scrittura, que fazem referência tanto à
atividade concreta de escrever quanto ao produto concreto de tal atividade. A
palavra inglesa para essas atividades concretas é writing
Assim, posso
entender que o letramento diferentemente de escrita se refere à parte abstrata
do ato de escrever, vai além do domínio de um código e dos mecanismos de
transmissão desse código a um suporte (papel, tela do computador etc). Rojo
(2001 in: SIGNORINI op.cit.), por sua vez, baseia-se em Barthes e propõe uma
diferenciação entre o escrito e a escrita, segundo a autora, o escrito
representa o traço, a grafia, ou seja, para Rojo o escrito representa o que
Gnerre (2003) conceituou como escrita. Já a escrita, para Rojo, representa
aquela que escreve textos, ou seja, que sai do espaço concreto do contorno das
letras para o abstrato das relações sociais que usam a linguagem e, portanto,
textos; temos o que Rojo chama de escrita sendo denominado como letramento por
Gnerre.
Acredito,
desse modo, ser pertinente uma breve discussão do conceito de escrita e de
letramento.
Quero adotar,
como definição de escrita, aquela apontada por Signorini (2001, p. 126).
Segundo a autora
No bojo das práticas de comunicação
social, a escrita é compreendida, portanto, como um modo de intervenção na/pela
linguagem, numa dada conjuntura sociocultural e histórica, e, portanto, numa
dada dinâmica multifacetada e complexa, envolvendo objetivos, recursos e
instrumentos variados não só os de natureza propriamente tecno-formal, como o
código e as tipologias textuais, por exemplo.
Exatamente
por se tratar o letramento de um conceito ainda recente em nossas pesquisas,
quero apresentar aqui as definições propostas por alguns autores.
AUTOR
|
DEFINIÇÕES
DE LETRAMENTO
|
Cavalcanti in: Cox e Assis-Peterson (2003, p.
107)
|
Letramento
é “um conjunto plural de práticas sociais que envolvem modos de falar,
interagir, pensar, avaliar e acreditar”.
|
Kleiman
(2003, p. 19)
|
Trata-se
de “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema
simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos
específicos”.
|
Signorini
(2001, p. 8/9)
|
Letramento
é visto “enquanto conjunto de práticas de comunicação social relacionadas ao
uso de materiais escritos, e que envolvem ações de natureza não só física,
mental e lingüístico-discursiva, como também social e
político-ideológica”.
|
Signorini
(2001, p. 124)
|
Letramento
é o “conjunto de ações e atividades orientadas para a interação social, que
envolvem o uso da leitura e da escrita e que integram a dinâmica da vida
cotidiana dos indivíduos e dos grupos de uma dada comunidade, ou de
diferentes comunidades”.
|
Soares
(1999, p. 47)
|
“Estado
ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as
práticas sociais que usam a escrita”.
|
Tfouni
(1995, p. 09)
|
Letramento
“focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita...”.
|
Tfouni
(2001, p. 78)
|
Letramento
está relacionado a um “conhecimento sobre a escrita que as pessoas dominam
mesmo sem saber ler e escrever, que é adquirido desde que estas estejam
inseridas em uma sociedade letrada”.
|
Matêncio
(2002, p. 44)
|
Letramento
são todas “as interações que se constituem por meio da palavra escrita”.
|
Sérgio R. Costa (2000,p. 15)
|
Letramento
ligado à “concepção paulofreiriana ampla de alfabetização (Freitre,
1966/10980): desenvolvimento de uma consciência crítica e reflexiva de
sujeito, para que ele possa ter acesso à cultura e se liberte como cidadão.
Portanto um processo (ou uma prática) social/coletivo de democratização do
saber”.
|
Barton (1994, p. 19)
|
Letramento
visto como “visões mais abrangentes de leitura e de esctira, e que, como tal,
é aplicado em diversas disciplinas e em frases como: letramento emergente,
usadas em educação”.
|
O que se
observa de comum em todas as definições é a presença da língua escrita em
interações ou práticas sociais. Vale destacar que o processo de letramento se
diferencia da alfabetização exatamente por esse caráter social. Enquanto no
processo de alfabetização o que se objetiva é o domínio da tecnologia ou dos
mecanismos para domínio da escrita (grafia, writing para Gnerre ou
escrito para Rojo), o letramento ultrapassa esse conhecimento e atinge a
instância do social, do uso efetivo e funcional da escrita (cf. Tfouni, 1995).
Essa escrita deixa de ser uma simples habilidade motora para tornar-se uma
ferramenta de expressão e de conhecimento de mundo.
Segundo
Signorini (2001, p. 125) “a filiação do estudo da escrita ao letramento
significa, pois, compreende-la não como um objeto único, estático e autônomo,
sempre o mesmo em diferentes suportes, momentos e situações”.
Corrêa (2001,
p. 137) estabelece uma distinção entre dois “tipos” de letramento, aos quais
ele denomina de “sentido restrito” e de “sentido amplo”. Assim, segundo o
autor, letramento de sentido restrito consiste na “condição do individuo que
exerce direta, ou indiretamente, práticas de leitura e escrita”. No sentido
amplo, letramento “liga-se ao caráter escritural de certas práticas, presente
mesmo em comunidades classificadas como de oralidade primária (aqueles que não
tiveram contato algum com a escrita tal como a conhecemos)”. Corrêa (2001) traz
como exemplo desse segundo sentido de letramento o fato de que nessas
comunidades, ditas de oralidade primária, o caráter de permanência do registro
lingüístico que “independe da tecnologia da escrita alfabética e que vem
exemplificado nos estudos de literatura oral” (p. 137)
4. Quando o oral e o escrito se “contaminam”
Sobre a
relação oral/escrito, ainda é válido falar do processo de hibridismo, ou como
se costuma dizer na escola, da “contaminação” da escrita pelo oral (SIGNORINI,
2001). O hibridismo não é um problema quando se pensa nos usos da escrita em chats
na internet, por exemplo, este parece ser um espaço de liberdade de usos de uma
escrita profundamente influenciada pela oralidade. Segundo Signorini (2001, p.
98), o hibridismo se instaura como problema quando se trata da escrita de
pessoas menos letradas. Para a autora as
produções de não ou pouco escolarizados, em suas tentativas de inserção em
práticas institucionais letradas, são geralmente percebidas como cópias
imperfeitas ou precárias de uma dado modelo, quando não são simulacros do que
deveriam/pretendiam ser.
Esses escritos dificilmente são percebidos como dotados de autoria (cf.
TFOUNI, 2001) ou como sendo textos mistos, mas merecedores de status de texto
como qualquer outro em que tal fenômeno de interferência entre oralidade e
escrita ocorra. Signorini (2001, p. 99) postula que tal hibridismo é inerente a
toda escrita e o define como sendo o “Imbricamento, conjunção, ou ‘mixagem’ –
para usar um termo de Street (1984), não só de formas percebidas como próprias
das modalidades oral e escrita, como também de códigos gráfico-visuais, gêneros
discursivos e modelos textuais”.
Corrêa (2001), anteriormente citado, estabelece uma relação entre
oralidade e letramento, o que ele chama de letramento de “sentido amplo”.
Segundo esse autor, essa relação atribui anterioridade histórica às práticas de
letramento como as concebemos em nossas sociedades ditas “letradas”, ao mesmo
tempo em que cria uma noção de contemporaneidade entre oral e escrito, pois a
“oralidade (primária) e letramento são contemporâneos e sua contemporaneidade
pode ser constatada pelo modo como os fatos são registrados lingüisticamente”
(p. 138). Um outro aspecto que aproxima a fala do escrito, segundo Corrêa
(2001) trata-se da permanência no tempo e da mobilidade no espaço. De acordo
com seus estudos, o autor observou que em comunidades ágrafas, o relato oral
exerce o mesmo papel da escrita em relação a estes fatores, ou seja, o relato
oral atravessa o tempo e se locomove no espaço.
Sobre a relação oralidade/letramento e especificamente a respeito da
aquisição da linguagem, Terzi (203, p. 91) afirma que
O desenvolvimento da
língua oral e o desenvolvimento da escrita se suportam e se influenciam
mutuamente. Nos meios letrados, onde a escrita faz parte da vida cotidiana da
família, a construção das duas modalidade se dá simultaneamente: ao mesmo tempo
que a criança aprende a falar ela começa a aprender as funções e os usos da
escrita, podendo se tornar uma leitora e produtora de textos não-alfabetizada
(Heath, 1982, 1983), já com concepções de letramento.
Desse modo, Terzi (2003) e Corrêa (2001) comprovam a existência de uma
relação não apenas entre escrita e letramento, mas também entre oralidade e
letramento. Quero, entretanto, adiar esta discussão pra um trabalho futuro.
5. Considerações finais
Diversos outros aspectos sobre a relação entre oralidade e escrita podem
ser discutidos, entretanto, em decorrência das circunstâncias de produção deste
texto, busquei me aprofundar em questões como a delimitação do campo de
pesquisa da escrita, a historicidade das pesquisas sobre a relação
oral/escrito, a relação entre escrita e letramento, além de traços de
hibridismo entre a fala e a escrita.
É possível concluir que os estudos
sobre a relação oralidade/escrita ou fala/escrita, ou ainda escrita/letramento
ou escrita/escrito constituem um objeto rico a ser pesquisado e discutido.
Acredito ainda que esta discussão é de suma importância para o processo de
ensino/aprendizagem de línguas materna e/ou estrangeira, uma vez que as
implicações do oral, do escrito e do letramento se tornam particularmente
tensas quando inseridas nesse processo de aquisição e uso social de uma língua.
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Maravilha de texto, por demais interessante, tanto que salvei no meu pc para consultar sempre que tiver necessidade. Parabéns querido Mestre.
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