Breve reflexão sobre o livro "Gênese dos discursos" do linguista francês Dominique Maingueneau, relacionando com a tese sendo desenvolvida no programa de doutorado em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
Maingueneau,
no capítulo “Primado do interdiscurso” apresenta as formas com que,
normalmente, os linguistas distinguem as duas presenças do ‘outro’ em um
discurso: a heterogeneidade ‘mostrada’ e a heterogeneidade ‘constitutiva’. Para o autor, o princípio da alteridade,
conceito importante também na obra de Bakhtin (1997), só é perceptível na
heterogeneidade mostrada, aquela que deixa marcas visíveis no texto (citação,
autocorreções, aspas etc).
O conceito de interdiscurso de
Maingueneau transcende a ideia dessa alteridade mostrada e se liga mais à de
uma heterogeneidade constitutiva, posto que o interdiscurso é parte inseparável
da constituição do próprio discurso. Em outras palavras, Maingueneau sugere
que, ao construir o meu discurso, o discurso do outro, inevitavelmente, sempre
fará parte dele.
É impossível não concordar com
Maingueneau. O próprio fato de concordar com ele já comprova que sua tese se
comprova (com a licença poética da redundância), pois só me é possível
concordar a partir dos outros discursos que fazem parte deste que agora
componho. Para argumentar a favor da ideia do interdiscurso, lanço mão, ainda
que não diretamente, dos conhecimentos acumulados pelo contato com outros
discursos e isto é o interdiscurso. Tenho entendido o interdiscurso como este lugar
oscilante que reside no ‘entre’, no espaço tênue que existe entre o que se
produz e aquilo que sustenta o que se produz. O interdiscurso, para mim, não
está nem no novo nem naquilo que já havia antes, ele está, exatamente, no encontro
abstrato destes dois espaços que se materializa no texto.
O texto é, portanto, não mais a
materialização do discurso, como supuseram e ainda supõem alguns teóricos
(MARCUSCHI 2001, POSSENTI 1996). Parece-me que o texto deve ser entendido como
a materialização do interdiscurso, pois ele será sempre processo e resultado do
encontro entre vários discursos. Digo processo e resultado porque não entendo
texto como resultado de um processo, mas como o próprio processo em si, isto é,
fazer um texto já é texto: o ato já significa. Tudo isto, obviamente, dentro de
uma perspectiva, que deve ser questionada, na qual se concebe o texto como
materialização do discurso.
Somos seres discursivos. Não
existimos fora do discurso, pois é pelo discurso que nos inventamos e que
inventamos tudo o que existe ao nosso redor. E tudo está sempre em comunhão e
em choque. Entendo os universos que habitam nossos universos discursivos como
estranhas paralelas que de vez em quando se esbarram ou se tangenciam.
Palavras, gestos, olhares, andares, cores, enfim, uma gama infinita de sinais,
símbolos, ícones carregadíssimos, sempre, de significados e, portanto, dotados
de discurso inundam nossas vidas diariamente e fazem, na verdade, do caos que
significa viver, algo com um pouco mais de sentido. É o discurso, melhor, o
interdiscurso, e não Deus, quem dá ordem ao caos, posto que Deus é somente mais
um produto desse interdiscurso.
Percebo agora que meu compasso se
abriu por demais e agora tentar trazer meu círculo de volta à discussão sobre minha
tese (tarefa proposta para este trabalho) pode comprometer o texto que ora se
materializa, enfim, eis meu desafio. Por se tratar de um texto, minha tese
encerra em si o interdiscurso acadêmico (no meu caso, como sou poeta, trago em
mim a intersemiose, a interlinguagem, que me impossibilita de ter os dois pés
na mesma ilha – apesar dos meus esforços – te(i)mo em afogar). Isso, sei, já
poderia ser suficiente – minha tese se encaixa ao que Maingueneau propõe: é um
texto, portanto, é interdiscurso. Entretanto, creio que há uma expectativa
maior por parte do meu leitor (que não é qualquer um) a respeito que agora ele
lê.
Tentarei.
Minha
pesquisa se volta para a formação do professor de português, mais
especificamente a formação inicial, que acontece na licenciatura em Letras.
Pretendo conhecer, analisar e entender as crenças desses futuros professores
sobre leitura e seu ensino. Crenças são saberes não científicos advindos das
interpretações do sujeito das suas experiências na vida (BARCELOS 2004, 2003;
PAJARES 1992; LUZ 2012, 2007), é como se vivendo e interpretando aquilo que
vive, o sujeito fosse criando um arcabouço teórico da própria vida. Neste caso,
este arcabouço teórico diz respeito à leitura.
Para acessar tais crenças, faço uso
de alguns instrumentos: entrevistas, narrativas pessoais, observação de aulas,
inventários, questionários. Estes instrumentos precisam, necessariamente,
dialogar entre si para que seja possível uma compreensão mais abrangente dos
dados. Conhecer as crenças de um sujeito é um processo muito complexo (PAJARES,
1992), principalmente porque, em muitos casos, nem este próprio sujeito tem
consciência delas. Por isso, então, faz-se necessária a aplicação de vários
instrumentos e a comparação dos dados obtidos com cada um.
Cada instrumento produz um texto, um
discurso e o discurso final, ou o texto final será, inevitavelmente, o
resultado da combinação, do diálogo desses textos todos ou desses discursos
todos, somados, a todos os outros textos ou discursos que tenho lido com a
finalidade de embasar minha análise. Falar, portanto e à guisa de um conclusão,
que minha tese e a teoria defendida por Maingueneau dialogam intimamente seria
abusar do pleonasmo – figura de linguagem que faço uso em meus textos de
literatura, mas que procuro evitar se estou tentando me manter,
discursivamente, no universo da linguagem técnica.
REFERÊNCIA
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
BARCELOS, Ana M. F. Crenças sobre aprendizagem
de línguas, Lingüística Aplicada e ensino de línguas in: Linguagem Ensino, Vol. 07, no. 1. pp. 123 – 156 Pelotas: Educat,
2004a.
_____,
A. M. As crenças de professores a respeito das crenças sobre aprendizagem de
línguas de seus alunos in: GIMENEZ, T. (org.) Ensinando e aprendendo inglês na universidade: formação de
professores em tempos de mudança. Londrina:
ABRAPUI, 2003.
LUZ, Leandro T. A. Crenças de futuros
professores de português sobre gramática e seu ensino in: CINTRA, Anna M. M. e
PASSARELLI, Lilian G. A pesquisa e o
ensino em Língua Portuguesa sob diferentes olhares. São Paulo: Blucher,
2012.
____, Leandro T. A. Discutindo o conceito de crenças na formação inicial do professor
de línguas: Reflexões sobre um conceito em consolidação
in: Trabalhos em Linguística Aplicada – UNICAMP, 2007
MARCUSCHI,
L. A. Da fala para a escrita:
atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.
PAJARES, M. Frank. Teacher’s beliefs and educational research: cleaning up a messy
construct. Review of Educational Research, v. 62, pp. 307 – 332,
1992
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola.
Campinas – SP: Mercado de letras, 1996
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