TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

terça-feira, 7 de maio de 2013

E POR FALAR EM SHAKESPEARE...


 Se for necessário apresentar motivos pelos quais se deva ler Shakespeare hoje em dia, todos eles poderão se encontrados em sua capacidade de investigar e compreender a fundo os processos do ser humano, tanto em sua condição de indivíduo como de integrante de um grupo social


         

           Falar de Shakespeare será sempre redundante. Há cinco séculos, estudiosos do mundo todo vêm se debruçando sobre as obras de Shakespeare que, parecem infinitamente fecundas, infinitamente geniais. Certamente, outros cinco séculos virão sem que se esgotem as possibilidades de estudo e de deleite com os inúmeros personagens, as inúmeras situações que esse gênio único no mundo nos deixou de herança. Segundo Heliodora (2008, p. 8)

                Na verdade, não se necessita de motivos para ler Shakespeare. É Shakespeare e pronto, deve ser lido. Hoje e sempre. Mas se questionados, podemos ir além desse puro e definitivo argumento de sê-lo simplesmente quem é e falar de suas profundas expedições ao interior do homem. Podemos falar de seu lirismo, de suas personagens nunca antes tão bem construídas, podemos falar de sua versificação inovadora, de seu vanguardismo ao quebrar regras aristotelicamente antigas; podemos falar de sua versatilidade, demonstrada em comédias, tragédias, peças históricas, sonetos; podemos falar de sua capacidade de registrar sua época e de transcendê-la ao mesmo tempo. Shakespeare é século XXI, século XXXI, enfim, é, ainda hoje, moderno e essencial.
                Moderno porque sua voz é a voz da humanidade toda e essencial porque eleva essa voz a níveis que só a verdadeira poesia pode elevar.
               
                “Os pais de Shakespeare eram analfabetos” (GOMES, 2001, p. 11). O próprio Shakespeare não estudou tanto. Como explica-lo? Seria mais aceitável fosse ele um grande estudioso, filho de intelectuais, e crescido em meio altamente letrado. Shakespeare inventou a si mesmo. Foi ele mais um de seus personagens.
                A arte, a verdadeira arte, não está embalsamada em muros escolares nem cabe em manuais de boa escrita. A verdadeira arte também não está no exótico, no sobrecomum (embora o grande artista venha a se tornar, sem dúvida, sobrecomum). Ela está num olhar novo. Um olhar pleno, inundado, obeso de precipitações. Um olhar que parece estar sempre a um passo do abismo. Um olhar satélite que capta imagens, sons, nuances, cores, perfumes, pesos, asperezas, dores, enfim, um olhar que é do homem, mas que lança esse homem num universo dos deuses. Esse olhar, penso eu, não é questão de dom ou de algum inatismo, tampouco é encontrado em algum livro de receitas poéticas. Esse olhaR há de ser despertado, há de ser descoberto, na verdade.
                Essa descoberta pode ser um grande acidente, como foi a de Cabral ou pode ser planejada como a de Benjamin Franklin. Pode ser para dentro de si como a de Leonardo da Vinci ou pode ser para os ares do mundo todo, como a de Santos Dumont.
                Está em nós, habita em cada um de nós. Todos somos gênios possíveis. O que nos falta, se algo nos falta, é a sutil percepção desse olhar. Vejamos um exemplo. Muitos pássaros anunciam o nascer do dia todos os dias e, todos somos capazes de ouvi-los cantar. Poucos, entretanto, somos os capazes de poetiza-los, como Shakespeare, em Romeu e Julieta:

Foi a cotovia, arauto da manhã, e não o rouxinol. Olha, amor, as riscas invejosas que tecem um rendado nas nuvens que vão partindo lá para os lados do nascente. As velas noturnas consumiram-se, e o dia, bem-disposto, põe-se nas pontas dos pés sobre os cimos nevoentos dos morros. Devo partir e viver, ou fico para morrer ...

Shakespeare seria, certamente, o mais comum dos mortais. Foi filho de pais analfabetos, nasceu em uma Stratford-upon-avon, pequena cidade do interior da Inglaterra, em sua época, com pouco mais de 1500 habitantes, casou-se, teve três filhos, dois gêmeos, um morre aos 11 anos. Tudo ia muito bem até que tudo o entedia. Tudo não lhe cabe, não lhe é suficiente. Movido pela intensa força dos dissatisfeitos, Shakespeare vai para Londres.
                Em Londres, escrever peças passou a ser “uma forma de ganhar dinheiro” (BURGESS, 2001, p. 90) e ele ganhou, fez fortuna e viveu uma vida de sucesso. Voltou, enfim, para Statford-upon-avon, sua pequena e pacata cidade, onde morreu, provavelmente de febre, após uma bebedeira.
                Chegando a Londres, Shakespeare encontra o sucesso da peça Tamberlão, de Marlowe (1564 – 1593), seu contemporâneo mais talentoso. Segundo Gomes (2001), Marlowe era um:

Rapaz de talento, elegante, educado – foi admirado, imitado e, quando morreu, foi pranteado por Shakespeare. Mantinha distância das rixas teatrais, pois era amigo do chefe político da rainha, Sir Francis Walsingham.

               
                Para alguns biógrafos, Shakespeare começou como simples cavariço, uma espécie de valete de cavalos; ou como um faz-tudo nos bastidores dos teatros, representando de quando em vez. Para outros, foi copista de peças, o que lhe garantiu acesso ao conhecimento literário da época. Para Rowe (apud Gomes, 2001), seu primeiro biógrafo, ele entrou no teatro como ponto, o que lhe foi vantajoso, pois, além de conhecer os textos, ele pôde, na falta de um ator, subir ao palco e demonstrar seu talento dramático. O fato é que, em poucos anos, Shakespeare consagra-se como um grande dramaturgo e poeta, conseguindo as graças do povo e da nobreza. “Aos 28 anos, após pelo menos cinco em Londres, Shakespeare gozava de bom conceito como ator e dramaturgo” (GOMES, 2001, p. 52).

                O sucesso, como era de se esperar, despertou a inveja de alguns. O mais invejoso talvez tenha sido Robert Greene (1558 – 1592), poeta, autor de cinco ou seis peças medíocres, que morreu de sífilis, abandonado e na miséria. Greene, certa vez, chamou Shakespeare de ‘corvo arrogante’ e o acusou de ser inculto e presunçoso. Esse acabou sendo a primeira referência escrita a Shakespeare, não explícita, mas, facilmente reconhecível. (HELIODORA, 2008, p. 23)

Há um corvo arrivista, embelezado com nossas penas, que com seu Coração de tigre envolvido na pele de um Ator supõe ser tão capaz de compor bombásticos versos brancos como o melhor de vocês; e sendo um absoluto Johannes factotum, é, em seu próprio conceito, o único Sacode-cenas do país.
               

                Shakespeare foi inovador em muita coisa, mas também teve suas inflluências, principalmente romanas. Sêneca e Plauto foram, talvez, suas principais inspirações. Sêneca nas tragédias, mais ágeis e sanguinolentas do que as gregas e Plauto nas comédias, cheias de desencontros, coincidências e mal-entendidos. De seu tempo, Thomas Kid (1558 – 1594), talvez tenha sido seu maior influenciador. Muito de sua Tragédia Espanhola, primeira obra conhecida como ‘tragédia de vingança’, está em Hamlet.

                Shakespeare talvez nunca tenha definitivamente abandonado sua fé católica, entretanto, não viveu num tempo e num lugar onde pudesse falar de seu credo abertamente. Antes, preferiu outros temas. Assim, sua estréia se dá com comédias leves e com a trilogia de Henrique VI, nas quais vangloriam a história inglesa.
Nosso dramaturgo britânico não abandona suas histórias de infância e o meio social em que vive. Em As alegres comadres de Windsor, por exemplo, ele faz referência às suas aulas de gramática. Em O mercador de Veneza, além de discutir a usura do próprio pai, Shakespeare trata do caso da execução do médico judeu Roderigo Lopez (1590), acusado injustamente de usura pelo conde de Essex, despeitado pelo apoio do médico ao então falecido Francis Walsingham. “Castrado, dependurado, cortado vivo, estripado e esquartejado na frente de uma multidão” (GOMES, 2001, P. 64) – assim é descrita a execução do judeu. Fato que dá início às idéias anti-semitas na Inglaterra, fato, também, mais tarde descoberto como fraude. Marlowe, naquele momento, apresentava O judeu de Malta, peça que, de certa maneira, trata do mesmo assunto.
Muitos de seus poemas se dirigem ao conde de Southampton. Jovem e belo conde que foi amigo íntimo e incentivador do trabalho de Shakespeare. Essa aproximação pode se dever ao catolicismo, crença que ambos comungavam, mas, para alguns, esses poemas revelam um possível relacionamento homossexual.
O fato é que o gênio transcende o próprio sexo. Especular sobre a sexualidade de Shakespeare, assim como a respeito de sua pouca escolaridade, é assunto para desocupados, ou desinteressados da verdadeira arte. Pouco importa o que Shakespeare fazia quando não era William Shakespeare, quando livre de sua pena. A nós interessa o que ele registrou no papel. Não façamos do nosso maior dramaturgo de todos os tempos mais um fantoche desses medíocres programas sobre pessoas pensando fazer arte que, infelizmente, povoam e entopem nossos canais de TV atualmente.
Shakespeare foi, acima de tudo, um homem de teatro. Ser um homem de teatro significa ir além da simples dramaturgia, significa viver teatro. Ele foi ator, foi encenador, fez fortuna e fama com seu teatro. Viver de teatro tem sido um desafio desde sempre, para Shakespeare não foi diferente. O seu desafio foi conquistar e cativar uma platéia altamente heterogênea e, como sabemos por meio de críticos modernos como a própria Virginia Woolf, por vezes inculta. O público elisabetano era composto das mais variadas classes sociais e preferências. O que é positivo, considerando o caráter democrático desse teatro, torna-se um obstáculo ao dramaturgo. Era preciso uma combinação exata de elementos que satisfizesse a todos os gostos, pois havia, entre os rudes da platéia, aqueles ávidos pela mais bela poesia.
Encontramos, assim, em Shakespeare todos os elementos: a poesia mais lírica, mais apaixonada; a morte mais violenta e mais sanguinária; a traição mais vil e baixa; a inocência mais pura; a culpa mais pesada; o arrependimento; a maldade sem culpa; a vingança; o desespero; a morte. Há uma mistura deliciosa de realidade e fantasia, de sonho e de fuga. Há, em cada personagem shakespeariano a experiência fundamentalmente humana que nos re-significa e nos arrebata ainda hoje.
A voz inocente de Desdêmona ressoa em milhares de jovens injustamente acusadas de adultério no mundo todo. A crueldade fria e a traição de Iago estão presentes em muitas transações capitalistas. A ira cega de Otelo está nas guerras e nos guerreiros. O amor inconseqüente de Romeu e de Julieta está em cada esquina e em cada boate. O arrependimento e a culpa de Macbeth arrastam bêbados às sarjetas no mundo todo. A loucura velada de rei Lear e a loucura explícita de Ofélia habita em todos nós.  Os desencontros de Sonhos de uma noite de verão, ou da Noite dos reis acontecem diariamente nas grandes e pequenas cidades do mundo. A cortante e melancólica dúvida de Hamlet é o que mais longinquamente nos distancia e distingue do animal que pasta.
Os amores impossíveis, os amores escondidos, as fugas, os fantasmas, as descobertas arrebatadoras, as vicissitudes humanas, os segredos bem guardados pelas amas e pelas paredes escuras de sombrios castelos. Todos os milhares de shakespeares que viveram em Shakespeare se multiplicam infinitamente em cada pedaço do planeta onde haja homens e mulheres, vida e morte, amor e ódio.
Shakespeare sou eu e é você. Shakespeare somos todos nós.


É mais fácil obter o que se deseja com um sorriso do que à ponta da espada..
Lutar pelo amor é bom, mas alcançá-lo sem luta é melhor.
Quando fala o amor, a voz de todos os deuses deixa o céu embriagado de harmonia.
Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente.
Os homens de poucas palavras são os melhores.
Se fiz alguma coisa boa em toda a minha vida, dela me arrependo do fundo do coração.
Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.
William Shakespeare

 

 

REFERÊNCIAS


BURGESS, A. A literatura inglesa, São Paulo: Ática, 2001
GOMES, M. A vida e a obra de William Shakespeare, coleção iluminados da humanidade, São Paulo: Minuano, 2001.
HELIODORA, B. Por que ler Shakespeare, São Paulo: Globo, 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário