Na
busca por uma metáfora que bem traduza as complexas relações sociais
estabelecidas pelo homem do seu nascimento ao seu atestado de óbito nada parece
mais propício que pensar num palco com sua grande cortina vermelha, sua
iluminação, seu cenário, seus atores em cena, um diretor, uma campainha
avisando o início da ação, um roteiro a ser seguido com papéis sendo assumidos
e interpretados e, o mais importante, uma plateia: o outro. O outro que nos
constitui, que nos fornece tudo aquilo que não somos, para, a partir disso,
tornarmo-nos, enfim, o que somos. Esta ideia, que Bakhtin chama de alteridade é
que nos fornece o princípio formador de nossa identidade. Em outras palavras,
sabemos quem somos a partir de quem não somos – não somos o outro e é nessa
negação do outro que nos formamos como
sujeitos.
E
o palco satisfaz plenamente o jogo social que se estabelece na formação da
identidade do sujeito, uma vez que este jogo é, na verdade, uma grande
encenação. O homem, em seu processo de autoconstrução vai se moldando ao que a
sociedade espera dele. Sociedade é este conceito bastante abstrato e complexo
que diz respeito a algo que preexiste a nós e continuará aqui quando nossa
lembrança já estiver esquecida. Ela existe, simplesmente, e dita regras,
estabelece costumes, discrimina maneiras de se comportar, hierarquiza pessoas e
carreiras, define padrões e exclui aqueles que, de alguma forma, não se
encaixam nesses aspectos. Ser um excluído social, um pária é, talvez, o maior
medo de todos nós. E para fugir disso o homem vai se vestindo deste outro
homem, deste personagem social: o homem do palco. Sob as luzes da ribalta, o
homem, então, exerce o seu papel, melhor, os seus papéis, porque são muitos os
papéis que este homem social deve ter e em cada um deles, espera-se um desempenho
exemplar. E vai o homem dividindo-se e multiplicando-se em tantos quantos forem
seus papéis: pai, filho, irmão, vizinho, cunhado, empregado, chefe, freguês,
religioso, assinante, telespectador, estudante, amigo, colega de trabalho,
rival, sócio, amante.
Para
ser bem avaliado socialmente, alguns papéis precisam ser vividos de forma
especial, digamos. O homem social não pode ser tudo o que quer quando, onde,
como e com quem quer. Não. O homem social segue as regras do jogo. Segue as
ordens de um diretor que ele nem conhece. Segue o roteiro escrito por alguém
que ele também não conhece. E neste roteiro, alguns papéis são mais bem vistos
que outros. Assim, é melhor que ele seja bem sucedido profissionalmente, é
melhor que ele acorde cedo e seja trabalhador, é melhor que ele se mostre
intelectual, que ele se apresente como alguém inteligente, de preferência
branco e heterossexual. De preferência religioso, magro, alto, destro, bonito,
jovem, sem deficiência física ou intelectual. Ainda é de bom tom que ele seja
educado, que não use gírias ao falar, que não fale palavrões, que se vista de
forma discreta, evitando excesso de cores, piercings,
tatuagens e outras excentricidades. Nosso personagem precisa, enfim, estar
sempre pronto a encaixar-se em qualquer papel, para isso tem de ser o mais
neutro possível, o mais sem personalidade possível, para ser mais exato. Aliás,
o ideal é que ele seja um personagem sem personalidade alguma.
Saltando
de uma metáfora a outra, o que temos são pessoas inéditas tentando se encaixar
em casas pré-fabricadas e, em nome disso, vão negando a si mesmas. De tempos em
tempos, no entanto, encontramos alguns que não se conformam (nem se enformam) e
são chamados de loucos ou de inválidos. Depois, os anos, muitas vezes, vão mostrar
que esses loucos e inválidos só estavam, na verdade, é criando suas próprias casas,
em vez de aceitarem, passivamente, as que lhe entregaram ao nascerem para morar.
Loucos
são os outros, os que querem ser normais.
E para finalizar, atrevo-me a uma
rápida loucura: trazer dois textos menos formais e mais literários – ainda que
bem dentro do assunto.
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Quem se constrói apenas com os tijolos que
lhe deram está condenado a viver, para sempre, em cômodos pequenos. Mas Quem
inventa os próprios tijolos faz de si um castelo. (Leandro Luz – “Por tudo
aquilo que o tempo não cura” – no prelo)
PELO
BEM DA FAMÍLIA BRASILEIRA
Está lá dentro há mais de
dez horas. O outro já faz três semanas. E o primeiro, há dois meses.
Até agora nenhum avanço.
Até agora nenhum avanço.
Já tentaram
choque? Fogo nos pés?
já
tentaram quebrar as pernas? Furar os olhos?
Sim,
Tudo
Tudo
E?
Nada.
Nada?
Sim, nada.
Os três insistem em continuar sendo canhotos.
Os três insistem em continuar sendo canhotos.
Então,
cortem o braço e a perna esquerdos.
Senhor, já cortamos o
braço e a perna esquerdos do primeiro.
E
então?
Ele deixou de ser
canhoto, é verdade...
Ótimo.
Sim. Mas não se tornou
destro.
Agora ele não é nada.
Agora ele não é nada.
Que
seja,
Melhor assim.
Antes termos um nada entre nós do que um canhoto.
Melhor assim.
Antes termos um nada entre nós do que um canhoto.