A Pequena Fábula de Franz Kafka:
análise de um gênero
discursivo na perspectiva bakhtiniana
ABSTRACT:
this research intends, according to Bakthinian theories of utterance, to
analyze the text “Small fable” from Franz Kafka. It’s necessary, thus, a very
careful observation of the genre to which the utterance belongs, besides the
analyses of the constitutive elements of this utterance/genre, as well as the
communicative sphere to which this genre belongs.
KEY
WORDS: Dialogism; discourse; fable
0- INTRODUÇÃO
Diversos têm sido os
estudos sobre a obra de Franz Kafka, e certamente sob variadas perspectivas
teóricas. Entretanto, ainda que amplamente estudada, retomar a obra de Kafka
como objeto de um estudo (tema) significa sempre um novo processo de
enunciação, uma nova visão teórico-analítica, capaz não de extenuar por
completo o objeto, mas de tematizá-lo de forma a, pelo menos relativamente,
esgota-lo, pois segundo Bakhtin (1997, p. 300):
Teoricamente, o objeto é inesgotável,
porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por
exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função
de uma abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja,
desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor.
Observando a afirmação de
Bakhtin e diante do objeto de estudo aqui proposto, posso afirmar que esta
análise possui uma abordagem enunciativa do problema, ou seja, uma abordagem
segundo a qual a análise se faz, considerando o uso da língua numa situação
concreta de comunicação. A enunciação, segundo Machado (1995, p. 67), consiste
na “unidade real do discurso comunicativo dotado de uma determinada forma
genérica que nos é dada livremente, no uso corrente da língua materna que
adquirimos antes mesmo dos estudos teóricos de gramática”.
Ainda em relação ao tratamento do objeto aqui
tematizado, devo atentar, como afirma Bakhtin, para a questão dos objetivos.
Assim, este trabalho possui o objetivo de tecer uma análise do texto “Pequena
Fábula” de Franz Kafka, tomando como base teórica, a noção de dialogismo,
amplamente presente na teoria bakhtiniana. Stam (1992, p. 72), ao falar de
dialogismo, afirma que “no sentido mais amplo, o dialogismo se refere às
possibilidades abertas e infinitas geradas por todas as práticas discursivas de
uma cultura, toda a matriz de enunciados comunicativos onde se situa um dado
enunciado”.
É
preciso, desse modo, considerar quais são as características desse dialogismo
que servirão de base de raciocínio na análise aqui proposta. Stam (1992, p 76),
ao citar exemplos desse dialogismo, fornece os parâmetros adotados nessa
análise, sendo eles: “discurso polifônico, polêmica interna oculta,
autobiografia polêmica, confissão, discurso que olha de lado e réplica
sarcástica”.
Fica
assim definido o objeto de estudo deste trabalho/enunciado. Não busco, de forma
alguma, qualquer tipo de esgotamento do objeto, o que seria, como já foi citado
anteriormente, inviável. Objetivo apenas realizar uma análise das
características intrínsecas ao dialogismo bakhtiniano presentes no
texto/enunciado de Franz Kafka.
1. FRANZ KAFKA: UM FABULADOR MODERNO
Anders (1969, p. 16)
questiona a visão onírica e exótica com que alguns críticos têm falado da obra
de Kafka, segundo ele “Kafka não é esteticista, santo ou sonhador, nem forjador
de mitos ou simbolista – pelo menos nada disso em primeiro plano: é um
fabulador realista”.
Pensar num Kafka
“fabulador realista” parece estranho: afinal, pode um fabulador ser realista? Não
seria próprio da fábula o avesso da realidade? A troca de papéis? Se a fábula
caracteriza-se essencialmente pelo humano e o não-humano em confronto numa
realidade onde animais falam, pensam, sentem; é possível, assim, ser fabulador
e ser realista?
Na verdade, segundo
Anders (1969, p. 17), “o método de Kafka consiste, pois, em suspender através
da troca de etiquetas, os preconceitos ligados a etiquetas, possibilitando, com
isso, julgamentos não preconcebidos”. Assim, a fábula em Kafka soa como um
instrumento, uma ferramenta para corromper preconceitos, para renomear coisas e
situações, para provocar estranhamento. Ainda segundo Anders (1969, p. 17)
Em Kafka, o inquietante não são os
objetos nem as ocorrências, mas o fato de que as criaturas reagem a eles
descontraídamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos
normais. Não é a circunstância de Gregor Samsa acordar de manhã transformado em
barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente – a trivialidade do
grotesco – que torna a leitura aterrorizante (...) De fato, nada é mais
espantoso do que a fleuma e a inocência com que Kafka entra nas estórias mais
incríveis.
Eis o espantoso e
contraditório em Kafka, ser fabulador e ser realista ao mesmo tempo. Em
“Pequena fábula” não é o fato do rato dialogar com o gato que provoca o
estranhamento, mas sim, o tratamento realista, natural, quase cotidiano que o
discurso possui. “O herói não pertence ao mundo. É justamente nessa
ex-centricidade que consiste o realismo kafkiano” (ANDERS, 1969: 27). Todo esse
tratamento do tema, em Kafka, não é, de forma alguma, despretensioso, pelo
contrário, está repleto de intenções; Anders (1969, p 21) afirma que: “Se Kafka
deseja afirmar que o ‘natural’ e ‘não-espantoso’ de nosso mundo é pavoroso,
então ele faz uma inversão: o pavor não é espantoso”.
Este estranho método de
estranhamento (com todo o direito de ser repetitivo) de Kafka se deve em parte
à sua própria história, sua própria personalidade, a esse respeito Anders
(1969, p 23) expõe que Kafka
Como judeu, não pertencia totalmente
ao mundo cristão. Como judeu indiferente – pois foi-o a princípio, não se
integrava completamente com os judeus. Por falar alemão, não se amoldava
inteiramente aos tchecos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava de todo
aos alemães da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como
funcionário público de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se
enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de
vez ao operariado.
Uma
personalidade tão particularmente dotada de antagonismos não poderia ter
produzido uma literatura menos antagônica, contraditória, polêmica.
No
prefácio da obra “Nas Galerias”, coletânea de contos e fábulas, de onde retirei
“Pequena fábula”, Flávio R. Kothe ( 1989) afirma que o que se tem de lugar-comum nesse tipo de
fábula é que o mais fraco (no caso o camundongo) saia vitorioso. Kafka, ao
inverter os papéis e subverter as expectativas do leitor, provoca, polemiza,
cria o conflito. Na verdade, precisamos pensar o que representa social e
politicamente a vitória do fraco nas fábulas. Existe uma espécie de
compensação, ou de ilusão de que um dia a ordem socioeconômica irá se inverter,
que os dominados finalmente tomarão o poder, essa é a ideologia existente por
trás das inocentes fábulas; o que elas pregam é que não há porque se preocupar,
fazer rebeliões, greves, motins; no fim, o pobre, o fraco, o submisso e
dominado há de receber sua recompensa (mesmo que seja no paraíso segundo o
pensamento cristão). Kafka, entretanto, por tudo que já foi dito, não poderia
concordar e contribuir para a disseminação de uma ideologia irreal, por isso,
rompe com o que se espera, e propõe uma ordem real das coisas, onde os
dominantes exercem seu poder e os dominados são esmagados, a menos que mudem
seu caminho. O estranho e irônico é que esse novo caminho é, uma vez mais,
proposto pelo dominante: “Você apenas precisava alterar a direção da corrida –
disse o gato, e devorou-o”.
2. FÁBULA: UM GÊNERO SECUNDÁRIO
Adotar um caráter
bakhtiniano de análise significa estender o olhar além do meramente textual,
implica observar aspectos referentes ao gênero escolhido, às características
desse gênero (construção composicional, conteúdo temático e estilo segundo
Bakhtin) e sua operacionalização. Antes de falar do gênero fábula, entretanto,
quero observar alguns elementos importantes em relação ao processo narrativo de
produzir discurso. A esse respeito, Araújo afirma que
A situação de enunciação apresenta
problemas peculiares, quando se trata de estudar o discurso literário. Os
elementos que definem a situação de enunciação comum – um enunciador, um
destinatário, um momento e um lugar particulares – revestem-se de máscaras
apropriadas ao jogo de cena literária.
O
discurso literário foi o objeto central de estudo de Bakhtin, mais precisamente
o gênero romance. Foi estudando o romance que Bakhtin tratou da questão dos
gêneros, do enunciado concreto, do estilo, do tema, da expressividade enfim, de
uma série de conceitos relacionados ao texto e ao discurso; essa discriminação
aqui realizada entre texto e discurso tem base no que postula Marcuschi (2003,
p. 24), segundo o autor: “Texto é uma entidade concreta realizada materialmente
e corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz
ao se manifestar em alguma instancia discursiva”.
Ao
tratar dos gêneros, especificamente, Bakhtin (1997) faz uma distinção entre
gêneros primários (de elaboração simples, cotidiana) e gêneros secundários,
que, segundo o autor, surgem numa situação de comunicação mais complexa e
relativamente mais evoluída, principalmente na escrita.
Os
gêneros literários, dentre eles, a fábula, fazem parte dos chamados gêneros
secundários que, ainda segundo Bakhtin (1997, p. 281), durante o processo de
formação “absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as
espécies, que se constituíram em circunstancias de uma comunicação verbal
espontânea”. Assim, por exemplo, quando um texto narrativo (gênero secundário)
faz uso de réplicas do diálogo (gênero primário), reestrutura esse gênero,
inserindo-o numa nova enunciação, como forma de citação (discurso de outrem),
vale lembrar o que Bakhtin fala sobre citação em Marxismo e filosofia da
linguagem, segundo o autor “o discurso citado é o discurso no discurso, a
enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso,
uma enunciação sobre a enunciação” (1995 p. 144).
Em “Pequena fábula” o que
encontramos é exatamente a réplica de um diálogo cotidiano entre um camundongo
e um gato, tratado - como próprio do estilo kafkiano - o mais naturalmente
possível. Aqui, as falas dos animais, cada uma com seu tema próprio, tornam-se
tema para o enunciado maior: a fábula de Kafka que, insere-se por sua vez, no
diálogo humano e social, no qual encontramos outros discursos literários ou
não. Assim, como diz Souza (1999, p. 113) “o discurso citado é um tema do nosso
discurso. Enquanto um enunciado citado, ele apresenta o seu próprio tema, e
assim integra o contexto do discurso do autor – o nosso discurso”.
Não
cabe aqui nenhuma espécie de tratamento tipológico ou estruturalista da
narração, mas sim, uma rápida exposição do pensamento bakhtiniano em relação ao
gênero secundário, no qual se insere a fábula, objeto deste estudo. Entretanto,
acredito que vale uma rápida observação de algumas características do gênero
fábula que certamente contribuirão para esta análise.
3. FÁBULA
Dentre os inúmeros
gêneros literários existentes, a fábula está entre os mais antigos. Segundo
Coelho (1997, p. 147), a fábula é
Nascida no Oriente, a fábula vai ser
reinventada no Ocidente pelo grego Esopo (séc VI a.C.) e aperfeiçoada séculos
mais tarde pelo escravo romano Fedro (séc. I a.C.), que a enriqueceu
estilisticamente. No séc. XVI, ela foi descoberta e reinventada pó Leonardo da
Vinci (mas sem grande repercussão fora da Itália e ignorada até bem pouco
tempo). No séc. XVII, La
Fontaine reinventou a ‘fábula’ (a partir do modelo latino e
do oriental oferecido pelos textos do indiano Pilpay), introduzindo-a definitivamente
na literatura ocidental
Uma
característica essencial da fábula é a atribuição de qualidades humanas a
animais, para Coelho (1997, p.148) “a peculiaridade que distingue a fábula das
demais espécies metafóricas ou simbólicas é a presença do animal, colocado em
situação humana e exemplar”, os personagens são assim, “símbolos, isto é,
representam algo num contexto universal (por exemplo: o leão, símbolo da força,
majestade, poder; a raposa, símbolo da astúcia; o lobo, do poder despótico
etc)” (COELHO, 19997, p. 148).
Por
trás da aparente inocência da fábula, há sempre um caráter crítico, além de uma
lição de moral, como sugere Góes (1984, p. 144)
A fábula é uma forma literária
indireta na exposição de sua expressão, de caráter geralmente crítico, de
análise precisa e tradução sintética dos fatos que são tanto objetivos quanto
eloqüentes para o entendimento. Transmite a crítica ou conhecimento em forma
impessoal, sem tocar ou localizar claramente o fato ou a personagem
O que se percebe é uma
certa tendência a amenizar ou mascarar a voz (crítica) do autor por meio do uso
de elementos como animais que já possuem uma forte carga semântica, por
exemplo, a raposa, que já carrega em si o estigma de ser astuta, esperta,
traiçoeira. Assim, ao invés do autor dirigir uma crítica direta à determinada
conduta social, a alguém ou a algum grupo que age de forma, digamos, desonesta,
ele o faz utilizando a figura da raposa. Desse modo, o autor utiliza uma outra
voz para expressar sua crítica e se exime, de certa forma, da responsabilidade
por isso, afinal, não foi ele quem disse primeiramente que a raposa é astuta ou
desonesta, essa característica já existe num espaço de conhecimento social
comum. Percebe-se aqui a forte presença do caráter polifônico do discurso e do dialogismo
bakhtiniano: o autor que utiliza a figura da raposa em seu discurso dialoga, na
verdade, com todo um conhecimento social adquirido ao longo de gerações e, ao
atribuir fala e atitude humanas à raposa, ele a faz dialogar de dentro do texto
com o universo exterior que ela representa.
Um
outro aspecto importante a ser levantado em relação ao gênero fábula é a
questão da moral, principalmente porque as crianças estão em processo de
construção de identidade e, para isso, estão armazenando informações de toda
espécie: éticas, morais, familiares, valores enfim que carregarão consigo para
sempre. Burgess (2001, p. 09) diz que “um valor é algo que alça nossas vidas
acima do nível puramente animal – o nível de conseguir comida e bebida, fazer
filhos, dormir e morrer”.
Nesse sentido, é de
essencial importância levar em consideração o que Bakhtin (1997) chama de
“atitude responsiva ativa”, ou seja, devemos estar conscientes de que as
crianças, ao lerem, não são sujeitos passivos que recebem as informações exatamente
da maneira que o enunciador as concebeu. As crianças interagem com o discurso
de forma ativa, criando seus próprios significados, significados esses que são
resultado de suas experiências de vida, do diálogo com outros textos, de suas
crenças pessoais e de outras influências externas (família, escola, amigos
etc). Assim, é importante evitar mensagens duplas, ambíguas, que possam gerar
conflito ou dupla interpretação. Sabemos que é próprio do discurso literário
ser ambíguo, polifônico, complexo, entretanto, como nos lembra Bakhtin (1997),
dominar determinado gênero discursivo implica conhecer os elementos
constitutivos desse gênero, dentre esses, a quem se destina tal gênero. Góes (1984, p. 148), a esse respeito, afirma
que as fábulas
Devem reunir um mínimo de condições
que não permitam confusões interpretativas naquilo que pretendem ensinar;
conceito claro e objetivo, sobriedade narrativa; linguagem depurada de toda
terminologia vaga, abstrata, inaccessível à criança.
“Tom
e Jerry”, personagens de desenhos animados, são exemplos disso. Inegavelmente
as crianças torcem pelo ratinho, certamente por identificação, o ratinho é
menor que o gato (que pode representar o adulto que repreende, que corrige, que
persegue), é mais frágil, é mais esperto enfim, assemelha-se mais ao mundo
infantil do que o gato. O que as crianças não sabem é que o rato transmite
doenças, que é sujo e que, numa visão mais naturalista, dentro da cadeia
alimentar, é presa do gato que é o predador e, só faz, seguir seus instintos naturais
de sobrevivência. Todos nós, seres carnívoros, alimentamo-nos de seres que
matamos, então somos seguramente todos muito cruéis. Não penso que as crianças
deveriam odiar o rato e querer seu fim, mas questiono somente os conceitos e
preconceitos que estão embutidos nas fábulas em geral.
Kafka,
como já foi dito, rompe com essas idéias fossilizadas a respeito de predadores
e presas nas histórias infantis, inverte o fluxo ideológico e permite que o
camundongo seja devorado pelo gato, assim, os papéis do estúpido e do esperto
invertem-se. O efeito que se tem é de estranhamento em princípio, e de realismo
concreto, traços característicos das fábulas kafkianas.
4.
DIALOGISMO EM “PEQUENA FÁBULA”
Fazer
uma análise científica de uma obra literária significa situar-me na delicada
fronteira de dois discursos, bem como de dois papéis. Falo exatamente do
discurso técnico e do discurso artístico e dos papéis de leitor e de analista.
Burgess (2001) fala desse tênue limiar entre ciência e arte como se tratando de
duas possíveis leituras de uma mesma verdade. O artista e o cientista percebem
o mundo e as coisas nele de forma diferente, mas a verdade é uma só, que
segundo Burgess (2001, p. 09) é um espetáculo
Que está por trás de um espetáculo
exterior (...) O sol se levanta a leste e se põe a oeste. Isso é o que vemos,
isso é o “espetáculo exterior”. No passado, o espetáculo exterior era visto
como a verdade. Mas então veio um cientista para questiona-lo e enunciar em
seguida que a verdade era muito diferente da aparência: a verdade era que a
Terra girava e o Sol permanecia imóvel – o espetáculo exterior estava dizendo
uma mentira.
Não quero, entretanto,
deixar de pensar que todo esse buscar a verdade está carregado de beleza e
arte. No fundo, cientista e artista buscam a mesma coisa: a beleza da verdade
universal, cada um a seu modo, com seu olhar e sua arte-ciência.
Como já foi dito anteriormente, quero
buscar em Stam (1992) os parâmetros norteadores dessa análise: discurso
polifônico, polêmica interna oculta, autobiografia polêmica, confissão,
discurso que olha de lado e réplica sarcástica. Passo agora a observar cada um
desses itens na obra de Kafka
4.1 – Discurso polifônico
“Pequena fábula” é um texto
polifônico primeiramente por ser entrecruzado por várias vozes. O texto de
Kafka é marcado pela presença do discurso direto, na verdade é constituído
apenas de um diálogo entre os dois animais (personagens – o gato e o
camundongo). A voz do narrador, assim, personifica-se na fala dos animais.
Embora o discurso tenha as características próprias do discurso direto (limites
ou fronteiras nítidas entre o discurso citado e o discurso que cita), o que se
tem na verdade em “Pequena fábula” é uma fala do camundongo que não se dirige
ao gato, mas a si mesmo. Marinho (1997), ao analisar os mecanismos enunciativos
em “Vidas Secas”, apresenta alguns aspectos importantes em relação ao aspecto
polifônico do discurso, aspectos que podemos observar também no texto de Kafka:
a) Personagem apresentada como uma
autoconsciência
Toda a fala do camundongo
representa exatamente essa autoconsciência: “Ah – disse o camundongo -, a cada
dia o mundo se torna mais estreito. No início ele era tão amplo que eu tinha
medo, continuei correndo e fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à
direita, muros ao longe, mas esses longos muros correm tão rápido um na direção
do outro que já estou no último quarto e ali, no centro, está parada a
armadilha para dentro da qual vou correndo”.
Primeiramente em “a cada dia o mundo
se torna mais estreito”, percebo a tomada de consciência de que o mundo se
estreita, inerente a essa noção, existe uma voz que a entrecruza, podendo ser
ao mesmo tempo a voz de uma criança que começa a perceber que o mundo não é
feito de fantasia, de sonho, mas sim, de realidade, e que essa nos põe limites
todo o tempo, ou a voz social de uma classe reprimida que se arrisca a se
perceber como tal.
Em seguida, quando o camundongo diz
“mas esses longos muros correm tão rápido um na direção do outro que já estou
no último quarto”, percebemos a conscientização em relação ao tempo e ao espaço
(cronotopo), assim, o que parecia inicialmente confortável (“fiquei feliz por
finalmente avistar, à esquerda e à direita muros ao longe”) torna-se o motivo
de sua preocupação, de sua angústia, é como se o camundongo tomasse consciência
de sua situação real e visse que o que ele tinha antes era apenas uma falsa
segurança transmitida propositadamente pela voz do dominador que ele carrega
gravada consigo inconscientemente.
Finalmente, a percepção
de que caminha para uma armadilha: “ali, no centro, está parada a armadilha
para dentro da qual vou correndo”. A utilização do verbo no gerúndio representa
a continuidade, a progressividade de uma ação; o que significa que, apesar de
tomar consciência de que corre para o seu fim, o camundongo não consegue parar
. É como se essa conscientização viesse tarde demais, num momento em que já não
há o que fazer, que o que resta é aceitar os fatos, o destino, a “cruz” ou
qualquer coisa assim, colocada em nosso subconsciente através das gerações e
que, como um tabu fossilizado, tornou-se uma verdade inviolável, indiscutível e
imutável: ao pobre cabe ser pobre somente.
b) Representação do homem no momento de
crise e de reviravolta de sua alma
Tomar consciência deveria
ser um ato de reviravolta, entretanto não é o que acontece em “Pequena fábula”.
O camundongo está o tempo todo em crise, é como se o seu falso mundo
confortável e seguro estivesse desabando, como se aquilo que se havia mostrado
certo fosse na verdade uma projeção de sua mente que assim desejava enxergar e
agora, diante da verdade dos fatos o que lhe restava era “dar uma reviravolta”,
tomar uma atitude, entretanto, essa reviravolta não vem e o camundongo acaba
devorado pelo gato.
c) Orientação em relação ao discurso do
outro e à consciência do outro
O camundongo, como já foi dito,
elabora um discurso para si mesmo, é como se ele refletisse e tomasse
consciência de uma série de fatos que jamais percebera antes, mas que de nada
lhe servirão agora. Do outro lado, temos o gato, que também toma consciência da
existência do rato, de seu questionamento e de sua inércia diante de seu
destino. O discurso do gato, por sua vez, orienta-se em relação ao do rato,
existe, na verdade, para o rato e, soa ao mesmo tempo como um eco da voz do
camundongo, como se fosse a conscientização final do que fazer diante de toda a
reflexão que ele vinha fazendo e, significa também, uma voz externa, a voz do
dominante, aquele que tem o poder para livrar o dominado de seu estado de
dominação, mas não o faz, exatamente por ser sua posição a mais confortável. O
gato toma consciência das reflexões do rato, mas não reflete em momento algum
sobre seu papel, sobre sua própria existência, como se ela toda se resumisse ao
simples fato de observar o tolo rato, manipula-lo, devora-lo e, ainda
ironicamente, entrar em sua mente e dizer o que ele deveria ter feito: “você
apenas precisava alterar a direção da corrida”.
É polifônico, dessa maneira, o
discurso, uma vez que se ouve juntamente com as vozes das personagens, vozes
sociais representadas pelas personagens, respectivamente as vozes de dominados
e dominantes numa sociedade capitalista.
4.2 – Polêmica interna
oculta
Todo
o discurso do camundongo é fortemente marcado por uma polêmica interna oculta.
Ele parece estar diante de acontecimentos reais da vida pela primeira vez e não
saber como agir diante deles. Polemiza assim com suas próprias crenças, aquilo
que lhe trazia conforto agora lhe serve de armadilha. A percepção de que existe
uma armadilha fatal e de que se dirige a ela desencadeia no camundongo uma
série de reflexões, entretanto, toda essa polêmica não é suficiente para
livra-lo de sua armadilha. O rato parece seguir algum programa, algum comando
interno, na verdade, internalizado, porque o que se tem aqui representado é um
confronto íntimo entre a voz do rato que toma consciência de si mesmo e uma voz
social internalizada: a de que ele é rato e de que ratos são assim mesmo, ratos
são apenas o alimento dos gatos. Essa voz última vence e o rato que, embora se
perceba inserido nesse jogo de dominador e dominado, prossegue em seu papel de
vítima, de fraco.
4.3
- Autobiografia polêmica
Como
diz a voz da sabedoria popular, a vida toda nos passa diante dos olhos minutos
antes de morrer. Assim foi com o nosso personagem. Temos, em uma única fala, a
biografia do camundongo. Nasceu, cresceu, criou seus próprios muros,
aprisionou-se neles e agora se encaminha para sua própria armadilha. Muitas
vezes fazemos isso conosco quando criamos e alimentamos preconceitos, acabamos
por nos fechar em paredes virtuais que têm a função de nos manter afastados de
tudo aquilo que não gostamos, não aceitamos ou simplesmente não entendemos ou
não queremos entender e, no fim, ficamos presos caminhando em direção à nossa
própria armadilha.
Dentro
do gato, o rato ainda é um rato, os muros que lhe cercavam deram lugar ao
estômago do gato, mas talvez, ele se sinta confortável lá, afinal, já estava
habituado a estar preso, a ser guiado; do estômago, segue certamente ao
intestino, de lá ao reto e enfim, está livre novamente: eis a metamorfose
universal: somos comidos, digeridos e excretados diariamente quando nos
deixamos simplesmente dominar e, fazemos reflexões nulas que não nos levam a
nada, porque reflexão sem ação é como caminhar pra armadilha: inútil.
4.4 – Confissão
Mais
uma vez, retomo a voz do camundongo, agora a percebo como confissão. O rato nos
confessa seu desconforto diante da nova situação que se instaura. Ao mesmo
tempo confessa sua passividade diante dela. Confessa saber que caminha para a
armadilha e pior, confessa aceita-la como se fosse realmente dela merecedor.
Entendo a crítica que Kafka faz às crenças em nós depositadas: acabamos por
segui-las tão cegamente que, mesmo ao tomarmos consciência delas, nada fazemos.
4.5 – Discurso que olha
de lado
Como
já foi dito, a voz do rato dirige-se a si mesmo, representa a sonorização de
seu conflito interno. Mesmo quando fala da armadilha representada pelo gato, a
ação é toda centrada em si mesmo: “a armadilha pra dentro da qual vou
correndo”. O discurso do gato, por sua vez, revela-se todo voltado ao do rato.
Ele está atento às reflexões do camundongo, aos seus questionamentos, sua
tomada de consciência e, finalmente à sua inércia. Ao passo que todo o discurso
do rato centra-se na primeira pessoa, característica própria do discurso
monológico, a fala do gato apresenta-se com todas as marcas típicas do diálogo
(cf. BRANDÃO, 2000): o gato responde ao rato, apresenta sugestões, aponta-lhe o
caminho, a saída, mas enfim, segue seu instinto e devora-o.
4.6 – Réplica sarcástica
O
último elemento dessa análise diz respeito exatamente à fala do gato. Como já
foi dito, seu discurso se volta ao rato, com todas as marcas tradicionais da
réplica do diálogo, com um aspecto a mais, uma forte dose de sarcasmo. O gato
sabe o tempo todo o que o rato deveria fazer para fugir, sabe mais, sabe que
isso seria muito fácil e tranqüilamente possível, entretanto, só se pronuncia
no último momento e de forma irônica, apontando o que deveria ter sido feito,
quando ele sabe já não ser mais possível faze-lo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi dito
anteriormente, o objeto é inesgotável. O texto de Kafka pode servir de tema a
inúmeros outros trabalhos/enunciados e cada um será, inegavelmente, único.
O que se buscou aqui foi
a percepção da presença do dialogismo bakhtiniano com as múltiplas vozes
(polifonia), um discurso polêmico e o uso de réplicas do diálogo cotidiano,
dentro do gênero fábula.
Kafka, com seu estilo
inconfundivelmente realista e crítico, consegue transmitir o conflito entre
classes sociais de forma verdadeira, como deve ser a realidade; com personagens
tão comuns em nossas vidas e em nossas histórias infantis e com uma ação que,
aparentemente não apresenta nenhuma novidade: um gato que devora um rato. A
novidade reside exatamente no dialogismo da obra, na tomada de consciência do
rato, em sua polêmica interna, sua confissão e, de certa forma, sua decisão de
tomar uma atitude passiva e conformista.
Por tudo que se observou,
posso concluir que o texto de Kafka é polifônico, dialoga com o mundo de outros
textos e com o mundo da consciência social, que é bastante crítico e que, como
em qualquer fábula, carrega uma forte lição, precisamos, apenas, estar bem
atentos, para percebe-la claramente.
RESUMO:- Este trabalho busca, à guisa
das teorias enunciativas de Bakhtin, analisar o texto “Pequena Fábula” de Franz
Kafka, para isso, é preciso uma cuidadosa analise do gênero ao qual o enunciado
pertence, além da análise de elementos caracterizadores desse enunciado/gênero,
bem como da esfera comunicativa a que pertence esse gênero.
PALAVRAS-CHAVE: dialogismo, discurso,
fábula
6.
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