ARTIGO - Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758
Leandro Tadeu
Alves da LUZ
Instituto Federal de São
Paulo – IFSP
Resumo: Este trabalho tem por objetivo
demonstrar como literatura e língua podem e devem dialogar na aula de
português, por meio da utilização de um poema para se ensinar a estrutura e uso
do texto argumentativo. Para tal, fez-se necessário definir texto de um ponto
de vista sociocognitivo-interacionista, segundo o qual os sentidos de um texto
não são inerentes a ele, mas, ao contrário, emergem na interação
autor-texto-leitor. Também foi importante definir o que é o texto argumentativo
e como se dá a elaboração da argumentação.
Palavras-chave: Texto; interação; argumentação
ABSTRACT: This work aims at demonstrating how
literature and language teaching can and should dialogue in the Portuguese
class, through the use of a poem to teach the structure of the argumentative
text. For this, it was necessary de define text from a sociocognitive-interactive
perspective, which proposes that the meanings of a text are not inherent to it,
but, on the contrary, they emerge in the interaction author-text-reader. It was
also important to define the argumentative text and how the creation of the
argumentation takes place.
KEY-WORDS: Text, interaction, argumentation
1. Introdução
Em nome de um pragmatismo exacerbado
e de um tecnicismo artificialista, por muito tempo a aula de português na
educação básica, principalmente na rede particular, acabou sendo fragmentada e
em alguns contextos ainda é. Falo de se instituir um professor para literatura,
outro para gramática e um terceiro responsável pelas aulas de redação. Esta
fragmentação, ainda que funcione do ponto de vista conteudista – características
de muitas de nossas escolas particulares – é muito prejudicial ao ensino de
português voltado para a emancipação do aluno e para o efetivo uso da língua em
suas inúmeras possibilidades de comunicação.
Não há literatura sem que se pense
em língua, nem há sentido em se ensinar gramática se não for para garantir a
qualidade do texto produzido pelo aluno. Da mesma forma, não há um bom texto –
pelo menos em seu sentido mais técnico e formal – que não siga as convenções da
norma culta padrão. Não faz sentido, portanto, a separação da aula de português
em blocos isolados que não se comunicam entre si.
Este texto trata de um exemplo de
como língua e literatura podem dialogar no processo de ensino-aprendizagem de
português e de como sempre há, mesmo na linguagem poética, possibilidade de se
pensar em elementos próprios da produção de texto.
2.
O objeto da aula
de português
Toda discussão que se pretenda
suficientemente profícua na área de ensino de língua portuguesa precisa, antes
de tudo, buscar a definição do objeto da aula de português. O que é, afinal,
que nós, professores de português, ensinamos em nossas aulas? A associação com
gramática e/ou literatura é imediata. Entretanto, estes estão longe de ser
nosso objeto de trabalho. A gramática é uma ferramenta que, se bem usada, só
poderá trazer benefícios ao aluno, pois seu domínio, inevitavelmente, faz-se
necessário para que o cidadão possa almejar posições sociais mais elevadas. A
literatura, por sua vez, é muito maior que a aula de português. A literatura é
uma arte, uma maneira de o homem entender a si mesmo, o mundo e os outros
(BURGESS, 2003). Na verdade, refletindo um pouco mais a fundo, vemos,
claramente, que não ensinamos literatura em nossas aulas, posto que não
formamos escritores ou críticos. Ensinamos, na verdade, um pouco de teoria
literária e um pouco de história da literatura (TODOROV, 2009) e, geralmente,
de forma desinteressante, uma vez que distante, muitas vezes, das realidades
dos alunos e voltada, na grande maioria dos casos, exclusivamente às exigências
do vestibular. Ganhariam muito mais nossos alunos se, em vez disso, tivessem
mais contato com a obra literária propriamente dita e pudessem, ao menos,
aprender a apreciar a beleza de uma obra bem escrita, mesmo que ela não
figurasse nas listas das universidades mais cobiçadas.
Isto posto, vou insistir, como já
fiz em outros textos (LUZ, 2011; LUZ, 2012 (no prelo)), que o objeto da aula de
português é leitura e escrita. É errado pensar que o processo de ensinar a ler
e a escrever se esgota nos primeiros anos de escolarização. Muito pelo
contrário, a tarefa essencial do
professor de português, inclusive em nível superior, é ensinar a ler e a
escrever, pois jamais se para de aprender leitura e escrita.
Obviamente os níveis de exigência
são outros, bem como os usos que se faz da leitura e da escrita.
3.
Letramento
Ao
tratar o ensino de leitura e escrita pela perspectiva do uso social, estou
discutindo Letramento.
O
termo letramento ainda é bastante recente, tanto na universidade quanto na
escola, por isso é válido apresentar algumas definições e discutir como venho
entendendo sua aplicabilidade, como pesquisador e como professor.
Vê-se
que a prática do letramento exige do professor e do aluno uma mudança global de
postura. A relação com o texto escrito precisa deixar de ser algo compulsório,
simplesmente, para servir como ponte de partida e de chegada de práticas emancipatórias
de linguagem em sala de aula. Professores precisam encontrar atividades que
tornem o ensino do texto algo significativo para os alunos. Entender como
significativo aquilo que aprende faz com que o aluno esteja envolvido com seu
aprendizado. Um aluno envolvido, como sugere Calkins (1989), participa
ativamente do processo de ensino-aprendizagem e desenvolve motivação
intrínseca. Motivar é repetitivo, envolver é dinâmico e significativo.
A
este respeito, Signorini (2001, p. 125) postula que “a filiação do estudo da
escrita ao letramento significa, pois, compreendê-la não como um objeto único,
estático e autônomo, sempre o mesmo em diferentes suportes, momentos e
situações”.
4.
O conceito de
texto
A
partir da discussão até aqui estabelecida, é possível afirmar que o objeto
central da aula de português é o texto. Texto em sua acepção mais abrangente,
como objeto semiotizado por excelência, ou seja, tudo aquilo que tem
significado para dois ou mais interlocutores, como o próprio lugar da interação
(KOCH, 2002) e o texto em sua acepção mais restrita, como unidade linguística
percebida como um todo completo e acabado, dotado de textualidade (OLIVEIRA,
2010). Koch (2011, p. 12) apresenta várias definições para o texto, de acordo
com diferentes correntes teóricas:
1.
Texto
como frase completa ou signo linguístico mais alto na hierarquia do sistema
linguístico (conceito de base gramatical);
2.
Texto
como signo complexo (concepção de base semiótica);
3.
Texto
como expansão tematicamente centrada de macroestruturas (concepção de base
semântica);
4.
Texto
como ato de fala complexo (concepção de base pragmática);
5.
Texto
como discurso “congelado”, como produto acabado de uma ação discursiva
(concepção de base discursiva);
6.
Texto
como meio específico de realização de uma comunicação verbal (concepção de base
comunicativa);
7. Texto
como processo que mobiliza operações e processos cognitivos (concepção de base
cognitivista);
8. Texto
como lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de
sentidos (concepção de base sociocognitiva-interacional)
Interessa
a este trabalho, especificamente, a última definição, principalmente pelo fato
de ela tratar os sentidos do texto como algo em construção na interação. Isto
significa que os sentidos não se encontram no texto, mas emergem a partir dele.
Assim, qualquer texto poderá ter sempre uma nova leitura, um novo processo de
significação, podendo adquirir diferentes acepções e servindo, didaticamente, a
diferentes fins.
É
fundamental para o ensino de português entender que os sentidos não estão presos no texto, mas são construídos na interação leitor-texto-autor,
nas intenções da escrita e da leitura, nos seus usos sociais. Esta tese vem
sendo defendida por diversos teóricos na última década (ROJO, 2009; CINTRA,
2008; KOCH, 2002; GERALDI, 2002). O texto é, portanto, o elemento interativo
por excelência. É pelo texto e no texto que os sujeitos interactantes do
processo de ensino-aprendizagem se constroem mutuamente. Professor e aluno
precisam, como propõe Miccoli (2010), entender que a matéria / conteúdo é só o
pretexto para o texto que está sendo construído no espaço de interação
promovido na aula.
Este
trabalho trata, exatamente, de uma dessas possíveis releituras de um texto e de
sua ressignificação com fins didáticos. O texto é um poema de Octacílio Batista,
musicado por Zé Ramalho, que ficou famoso na década de 80 na voz de Amelinha:
“Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor”. O que
pretendo demonstrar é como, a partir dele, foi possível ensinar a estrutura do
texto dissertativo/argumentativo, especificamente do artigo de opinião a uma
turma de ensino médio.
5.
A argumentação
Para
Abreu (2009), argumentar significa convencer e persuadir. Convencer, para o
autor, refere-se ao campo da razão, significa fazer com que o outro mude seu
pensamento. Persuadir, por sua vez, está no campo das emoções e tem como
objetivo fazer com que o outro mude suas ações.
Luz
(2011, p. 104), a este respeito, afirma que
Argumentar significa, acima de
tudo, fazer escolhas e defender a verdade dessas escolhas. Significa ter uma
tese, acreditar nela e buscar formas de fazer com que outras pessoas também
acreditem nela. Para fazer escolhas, é preciso, antes de qualquer coisa, saber
transformar informação em conhecimento.
Informação e conhecimento, como
percebemos na citação acima, não são a mesma coisa. A informação existe
independentemente da nossa interferência. Conhecimento, por sua vez, é fruto de
nossas ações, é o resultado das transformações que elaboramos a partir das
informações que temos. De nada servem informações se elas não se transformarem
em conhecimento. A escola é o lugar de se transformar informação em
conhecimento. O mundo anda afogado em informação e oco de conhecimento –
precisamos, urgentemente, buscar formas de se inverter isso.
Abreu (2009) trata a argumentação
como gerenciamento de informação e emoção. Eu proponho o gerenciamento de conhecimento
e emoção. Conhecer a matéria sobre a qual se vai argumentar, é fundamental para
o sucesso da argumentação, como já nos ensinava o padre Anchieta no século XVII
no Sermão da Sexagésima.
Estruturalmente, o texto argumentativo
consiste, basicamente, na escolha de uma tese, na definição de um
posicionamento crítico a respeito dela e, a partir daí, no esforço de provar a
validade da tese. Este provar acontece, exatamente, por meio da argumentação.
Dentre os vários argumentos existentes, os mais comuns e, por isso, mais
importantes de se entender são (ABREU, 2009; LUZ, 2012 no prelo):
1.
O
argumento por exemplo, abundantemente usado nas mais diferentes situações de
argumentação. Consiste em citar nomes; fatos ou situações que reforcem as
ideias da tese a ser defendida;
1.
O
argumento por analogia, que consiste em traçar comparações entre dois ou mais
elementos. A ideia é provar uma ideia usando algo semelhante que já tenha sido
provado anteriormente;
2.
O
argumento por autoridade, utilizado sempre que o autor traz para o seu texto
uma voz externa, que seja autoridade no assunto tratado. Trata-se de pôr em
destaque a característica inerente a todo texto de dialogar incessantemente com
outros textos. Falo em polifonia, dialogismo ou intertextualidade.
3.
O argumento de princípio, que é usado quando se
apresentam verdades indiscutíveis, como os axiomas científicos ou os saberes do
senso comum;
4.
O
argumento pragmático ou de causa e consequência, que consiste em justificar
determinado acontecimento por meio de suas causas.
A
argumentação está presente em inúmeros gêneros textuais, como na dissertação de
mestrado, tese de doutorado, em uma resenha ou em um artigo de opinião; no
debate e defesa judicial, na carta de solicitação, no ensaio científico
e participa das mais variadas formações discursivas: discurso acadêmico,
religioso, judicial, pedagógico. Por isso é tão importante que se trabalhe a
argumentação em sala de aula.
Por se tratar de um tipo de texto quase
que exclusivamente encontrado nos textos ditos técnicos, centrados na função
referencial da linguagem (Jakobson, 2005), os professores tendem a trabalhar a
argumentação sempre a partir de textos explicitamente argumentativos, como é o
caso do editorial ou do artigo de opinião. O que proponho aqui - e propus aos
meus alunos - é o trabalho com a estrutura do texto argumentativo a partir de
um texto artístico.
6. A análise do poema
6.1 – Estrutura e conteúdo
Numa luta de
gregos e troianos
Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história de um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor
Alexandre figura
desumana
Fundador da famosa Alexandria
Conquistava na Grécia e destruía
Quase toda a população Tebana
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador
E depois de vencê-la, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa
Mulher nova bonita e carinhosa
Faz um homem gemer sem sentir dor
A mulher tem na
face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher mimosa flor
A história seria mentirosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor
Virgulino
Ferreira, o Lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor
Uma
análise estrutural, sem importância para este trabalho, mostra que o poema de
Octacílio Batista, musicado por Zé Ramalho, é composto por 4 estrofes com 10
versos cada. Os versos seguem a mesma métrica, são decassílabos, com sílabas
tônicas nas posições 3, 6 e 10. O poema é, ainda, marcado por rimas
emparelhadas e intercaladas.
Interessam
muito mais os esquemas de textualização que extrapolam as noções de estrutura
poética. Por exemplo, pretendo focar esta análise em algumas questões centrais,
como:
a. De que trata o texto, fundamentalmente?
b. A qual ou a quais gêneros o texto pertence?
c. Qual tipologia textual predomina no texto?
Vale esclarecer o
que se está entendendo por gênero e por tipo de texto. O conceito de gênero
aqui empregado é aquele proposto por Bakhtin (1997) e empregado em inúmeros
outros trabalhos ((BRONCKART
2003, DIONÍSIO et al 2003, MARCUSCHI 2003, MEURER e MOTTA-ROTH 2002,
BONINI 2008, BAZERMAN 2005, 2006, 2007
). Segundo este conceito, gênero é um tipo relativamente estável de enunciado.
O gênero é, em outras palavras, a materialização empírica de um discurso, de um
ato de fala ou de um esforço comunicativo.
Para Bronckart (2003, p. 37):
Toda língua
apresenta-se como um
conjunto de subsistemas
encaixados, movediços e permeáveis, que
são apenas
apreensões estruturais abstratas das modalidades de funcionamento
dos diferentes gêneros
de textos, únicas realidades
empiricamente atestáveis das línguas.
É por meio do gênero que nos comunicamos e é
por meio dele que somos capazes de viver em sociedade. Para Bakhtin, ainda, o
gênero pressupõe a coexistência de três elementos: a estrutura composicional, o
conteúdo temático e o estilo. A estrutura pode ser entendida como o layout do gênero, sua disposição
espacial; o conteúdo temático é o assunto de que trata o texto e o estilo,
finalmente, é a forma como o assunto é abordado. O mesmo tema pode ser
elaborado de inúmeras maneiras diferentes. É exatamente isto que busco
salientar aqui – não é porque tratamos de temas, digamos, formais ou técnicos,
que os textos serão, necessariamente, técnicos e formais.
Respondendo às
questões propostas, temos que:
a. De que trata o texto fundamentalmente?
O texto trata,
fundamentalmente, do papel da mulher na História da humanidade. A todo momento
o autor reforça a importância da mulher. A construção textual se dá por meio do
paralelismo narrativo com destaque para a relação homem x mulher: seguidamente
a cada menção a um importante nome masculino da nossa História, o autor
apresenta uma mulher relacionada a ele. Ele finaliza cada uma das
micronarrativas com a ideia de que a mulher se sobrepõe ao homem.
b. A qual ou a quais gêneros o texto pertence?
Em
princípio, logo na primeira passagem de olhos, percebemos que se trata de um
poema, pela sua estrutura composicional: versos dispostos em estrofes. Este
primeiro gênero – poema, entretanto, foi metamorfoseado e se transformou em
letra de música. O que significa isso? Significa que as marcas rítmicas típicas
da poesia ganham mais cor, mais destaque. Ao musicar o poema, Zé Ramalho
enfatizou a tonicidade de algumas sílabas, enfatizou determinadas pausas, criou
ligações onde talvez não houvesse no texto original. Em outras palavras, o
compositor, ao se apropriar do poema e ressignificá-lo, atribuiu-lhe uma nova
camada semiótica, uma nova carga semântica e uma nova função
pragmático-comunicativa. O texto agora além de ter voz tem uma voz que canta.
Finalmente, este gênero que fora
poema e transformou-se em letra de música ganha, ainda, uma terceira camada
semiótica ao receber o arranjo típico da música popular brasileira. Somam-se,
assim, à sonoridade dos fonemas, das palavras e das combinações sintático-semânticas,
as combinações de melodia, as harmonias, os timbres dos diferentes instrumentos
musicais, os arranjos vocais, enfim, uma série de elementos que, novamente,
ressignificam o poema. Agora o texto tem uma voz que canta e que não canta
sozinha.
Todo este processo enriquece, ao
mesmo tempo em que expande exponencialmente as possibilidades de interpretação.
A ideia de que os sentidos estão aí para serem construídos na interação
escritor – texto – leitor se intensifica, pois o receptor não se trata mais apenas
de um leitor, ele é, sim, um leitor, mas é também um ouvinte. Novas relações
com o texto e a partir do texto se estabelecem. Novos usos se inauguram e novas
fronteiras se quebram e se firmam.
c. Qual tipologia textual predomina no texto?
Finalmente,
observando a tipologia textual, classicamente separada em narração, descrição e
dissertação (ABREU, 2008), podemos cair na armadilha de pensar em narração,
posto que há elementos da narração no texto (personagens, enredos) e podemos
pensar em descrição, posto que há, sem dúvida, elementos que descrevem aspectos
(“a beleza atrativa de Roxana”, por exemplo). Realmente, podemos encontrar
indícios de narração e descrição no texto (como aliás acontece em praticamente
todo texto literário), entretanto a pergunta fala de predominância e, sem
dúvida, o que predomina no poema é a dissertação. Trata-se de um texto
dissertativo e é assim que pretendo analisá-lo.
6.2. O poema como texto dissertativo
Dissertar significa argumentar.
Elaborar um texto dissertativo, como dito anteriormente, implica delimitar um
tema a ser discutido, definir uma posição crítica diante deste tema
(expositivo, favorável ou contrário) e defender a posição assumida.
Por seu caráter essencialmente
pragmático, o texto dissertativo, ao ser ensinado, acaba sendo formatado, isto
é, acaba ganhando uma forma rígida: introdução, desenvolvimento e conclusão.
Obviamente, todo texto precisa apresentar o assunto de que trata, desenvolvê-lo
e concluí-lo. O problema que vislumbro é estabelecer modelos rígidos para isso.
Mais importante que seguir modelos, decorar expressões de introdução ou de
conclusão é entender, de fato, o que significa escrever um texto com finalidade
de dissertar sobre determinado assunto. Vejamos o que o poema pode nos ensinar
a este respeito.
Mulher
nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor trata, como já
dito, do papel da mulher na História da humanidade. Temos, então, um tema bem definido
e também temos o posicionamento do autor em relação a ele. Onde podemos
perceber este posicionamento? No próprio título. “Faz o homem gemer sem sentir
dor” mostra o poder da mulher sobre o homem, ou seja, o autor está se
posicionando: para ele, a mulher não está atrás de um grande homem, ela está,
sim, à frente dele, no comando.
Uma vez definido o assunto de que
trata o texto e o posicionamento do autor, vejamos como ele se estrutura.
Como
o autor introduz seu texto?
A
introdução de um texto dissertativo tem as seguintes funções: a. apresentar o
assunto de que trata o texto; b. mostrar a posição crítica do autor em relação
ao assunto abordado; c. despertar o interesse do leitor e d. caminhar para o
desenvolvimento do assunto. Pensando nesses aspectos, fica claro que a
introdução do texto em análise não está no começo dele, como se esperaria
canonicamente. Trata-se, na verdade, dos 4 primeiros versos da terceira
estrofe:
A mulher tem na
face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
O
autor apresenta o assunto do texto: a mulher e se posiciona diante dele “quem
não ama o sorriso feminino desconhece a poesia de Cervantes”, isto é, para
conhecer a beleza e a força da obra de um homem (Cervantes), há que se conhecer
e se reconhecer as qualidades femininas.
A
partir desse ponto, o autor começa a argumentar a favor de seu posicionamento.
Ainda na mesma estrofe (a terceira), ele caminha para sua argumentação:
A bravura dos
grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher mimosa flor
A história seria mentirosa
Sobrepondo-se
à bravura dos grandes navegantes está a delicadeza aparente da flor. A mulher,
personificada na flor, representa a força que habita a fragilidade. Ainda que
fisicamente mais frágil, a mulher encontra em outros elementos a força que lhe
falta.
O autor segue, então, para o que
seria, classicamente, o desenvolvimento de sua dissertação. As demais estrofes,
com exceção do refrão, são partes constituintes desse desenvolvimento. São, em
outras palavras, seus argumentos:
Numa luta de
gregos e troianos
Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história de um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Alexandre figura
desumana
Fundador da famosa Alexandria
Conquistava na Grécia e destruía
Quase toda a população Tebana
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador
E depois de vencê-la, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa
Virgulino
Ferreira, o Lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Como
já foi dito, argumentar significa o esforço de um interlocutor em convencer e
persuadir o outro. Para isso, ele lança mão de vários recursos argumentativos.
No poema analisado, predomina o argumento por exemplo. Por meio das
micronarrativas, o autor cita exemplos de momentos históricos nos quais grandes
homens tiveram importante destaque e, em seguida, apresenta uma figura feminina
que dominava esses tão heroicos homens.
Esta
relação homem x mulher na História encontra-se esquematizada no quadro abaixo:
Homem/ feito histórico
|
Mulher
|
Menelau x Páris na famosa guerra de Troia
|
Helena – mulher pela qual, supostamente Menelau e
Páris começaram a guerra que durou mais de dez anos e terminou com o famoso
episódio do cavalo de Troia.
|
Alexandre – Fundação de Alexandria – destruição
da população tebana
|
Roxana – mulher cuja beleza dominava Alexandre.
|
Virgulino Ferreia (o lampião) – cangaceiro do
Nordeste do Brasil que aterrorizou diversos estados no início do século XX
|
Maria Bonita – companheira de Virgulino.
|
A beleza da poesia soma-se à
competência textual do autor em estruturar sua argumentação de forma a ir construindo
um texto de tal forma feliz que a conclusão é a única possível: “mulher nova,
bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor”. O refrão do poema
serve-lhe de conclusão. Como pregam os manuais, a conclusão deve retomar o
assunto do texto e encerrá-lo e é isto, exatamente, que faz o refrão - ele
reforça tudo o que foi dito anteriormente e fecha o texto de forma brilhante.
7. Considerações finais
Todo
texto é sempre passível de uma nova leitura, de um novo processo de
significação. Todo texto abre portas à criatividade. Engana-se quem pensa que
só o autor pode ser criativo. O leitor é livre para criar sentidos, para – como
dizem – ‘viajar’ com o texto. O limite, se há limite, é partir sempre do que
está no texto. Se há espaço para criação de significado, o leitor deve usá-lo.
Foi possível perceber que, mesmo uma
letra de música, um poema musicado, pode servir à finalidade de se ensinar
produção de texto. Este foi apenas um exemplo dos muitos que eu sei que existem
do sucesso na integração entre língua e literatura. Ensinar a escrever com quem
escreve bem é muito mais que seguir modelos, significa abrir portas para que o
aluno, inclusive, supere o modelo.
Os alunos se mostraram entusiasmados
com a ideia de encontrarem numa música o “modelo da dissertação”. Cantaram
junto com a letra, brincaram com ela e, no final, foram autores, também. Pedi a
eles a retextualização do poema, agora transfigurado em artigo de opinião e
voltado às questões que envolvem a mulher atualmente.
Temos, hoje, o privilégio de ter um
aluno multimídia, um aluno repleto de informação precisando de nossa ajuda para
transformar essa informação toda em conhecimento. Nosso aluno é antenado,
plugado, múltiplo e criativo. Nós, professores, precisamos acompanhar todo esse
movimento. Não penso em abandonarmos o que aprendemos em nome de modismos, mas
em estarmos atentos e aproveitar, das novidades, aquilo que nos pode ser útil.
Dissertação não precisa ser ensinada
só com textos classicamente dissertativos. Assim como nada precisa ser ensinado
a partir de modelos prontos, de regras acabadas. Somos donos do nosso saber e
podemos usá-lo de forma criativa. Ser criativo no seu ofício é marca
fundamental, aspecto basilar da configuração e constituição da
profissionalização que todos buscamos. Somos profissionais da educação – ser
profissional significa agir criativamente a partir de um conjunto de
conhecimentos adquiridos. Sejamos, pois, criativos profissionais.
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