TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Reflexão sobre QUANDO DIZER É FAZER de Austin



QUANDO DIZER É FAZER
AUSTIN


                Ao sintetizar a obra de Austin, vou, inevitavelmente, destacar sua importância para os estudos da linguagem. Austin é responsável por estabelecer os fundamentos do que seria a pragmática ou a linguística do uso. Seu papel, portanto, para os estudos linguísticos, é de suma importância.
                Relembrando Bakhtin, entretanto, é preciso observar que não há um discurso realmente fundador, isto é, Austin não elaborou sua teoria a partir do vácuo conceitual. O teórico teve predecessores que o alimentaram no sentido de repensar a língua e seus estudos. Um desses predecessores foi Jakobson que, como sabemos, ao falar em funções da linguagem, perpassa os usos possíveis dela. Ao afirmar que a linguagem tem como uma de suas funções pensar a organização da mensagem (poética) ou convencer/persuadir o interlocutor (conativa), Jakobson está, na verdade, lançando o embrião do que seria, na teoria de Austin, os diferentes usos que o falante faz da língua e os diferentes efeitos provocados por esse uso.
                Em “Quando dizer é fazer”, temos plenamente desenvolvida a ideia dos enunciados performativos, aqueles que ao serem enunciados executam juntamente uma ação, como é o caso de ‘prometer’, ‘apostar’, ‘desafiar’. Temos, ainda, a desvelamento daquilo que está por trás do que se diz: os atos de fala.
                Austin propõe a existência de três atos que circunscrevem o enunciado: locutório, ilocutório e perlocutório. O ato locutório, ou locucional diz respeito ao que efetivamente é dito/enunciado, aquilo que toma corpo na língua, que usa sons, gestos, entonação. O ato ilocutório, ou ilocucional está no campo psicológico, isto é, diz respeito ao que se quis dizer com o que se disse, ou, em outras palavras, com as intenções do falante. Finalmente, o ato perlocutório ou perlocucional está no campo da interação e diz respeito ao efeito de sentido provocado no ouvinte/receptor; em outras palavra e de modo simplista, o ato ou efeito perlocutório diz respeito ao que se entendeu do que se disse.
                Grosso modo, os três atos podem ser sumarizados como se segue:
·         Ato locutório/locucional à aquilo que, efetivamente, é dito / enunciado;
·         Ato ilocutório/ilocucional à aquilo que se quis dizer com o que se disse / enunciou;
·         Ato/efeito perlocutório/perlocucional à aquilo que se entendeu do que se disse / enunciou.
Jamais me esquecerei do Dr. Alfredo, professor de Latim do meu primeiro ano de graduação, que, para pedir que eu lhe buscasse um apagador, criou o seguinte diálogo:
                               - Leandro, por favor, tire a cueca e apague a lousa.
Perplexo, indaguei:
                               - Como assim, professor? Tirar minha cueca?
E ele, então, convidou-me para a sua mesa, puxou outra cadeira e pediu que eu me sentasse:
                               - Suponha que nós estamos jantando, o saleiro está ao lado do seu prato e eu digo “nossa, minha salada está sem sal”, o que eu quero, Leandro?
                               - O saleiro.
                               - Então, vá buscar um apagador para mim!

Não sabia ainda, mas estávamos no meio de um complexo ato de fala ou de vários. Ao pedir que eu tirasse a cueca (ato locutório), ele queria, na verdade, que eu buscasse um apagador para apagar a lousa (ato ilocutório). Eu, entretanto, não entendi a intenção do professor e já estava a ponto de tirar a cueca realmente. O exemplo do restaurante foi esclarecedor. Ao afirmar que a salada estava sem sal, ele queria de fato pedir que eu lhe passasse o saleiro e não, apenas, fazer uma constatação.
Bem mais tarde, fui entender meu professor, ao conhecer as ideias de Austin e os atos de fala.
Austin contribuiu, como já disse, enormemente para a Linguística, principalmente porque, a partir de seus estudos, outros teóricos desenvolveram esforços no sentido de entender a língua em funcionamento. A linguística deixava, assim, de ser um estudo do sistema, como propôs Saussure e Chomsky, e passava a ser um estudo do uso. Obviamente, não se pode desprezar o sistema por completo; trata-se, na verdade, de devolver-lhe ao seu devido lugar – não o centro do processo linguístico, mas o alicerce sobre o qual se erguem os edifícios das falas, dos usos, dos discursos.
                Minha pesquisa se volta para as crenças que futuros professores de português trazem consigo sobre leitura e seu ensino. De forma alguma, preocupa-me o sistema, mas o uso. Quero entender o contato que esses alunos de Letras tiveram e têm com a leitura em suas vidas pessoais e em sua escolaridade e de que forma este contato moldou e/ou molda aquilo que eles pensam sobre leitura e sobre como ensiná-la. Foi, certamente, no uso da leitura que essas crenças se fundaram e será, também, no uso que elas se manifestarão mais fortemente. Por isso, aliás, meus instrumentos de coleta de dados privilegiam situações de ensino-aprendizagem e não, simplesmente, o conceito de leitura. Acredito que no uso em sala de aula, os conceitos e as concepções emergem mais verdadeiramente. Assim, determinado professor pode dizer que acredita numa concepção interacionista da língua e, se isso não for verdade, ser desmentido pela sua ação em sala de aula; em outras palavras, o seu dizer e o seu agir (usando palavras de Austin) não se encontram.
                A leitura de Austin deveria fazer parte de todos os cursos de graduação em Letras, ao lado de outros grandes linguistas. Acredito que o conhecimento traz poder e autonomia, um professor que conhece as teorias que fundamentam o seu dizer e o seu agir terá, sem dúvida, mais condição de exercer com competência seu ofício. Por outro lado, acredito que tais teorias precisam estar sempre vinculadas à sala de aula, pois não podemos nos esquecer de que estamos em um curso de formação de professores. De nada vale discutir os atos de fala se o aluno de Letras não consegue entender como isso poderia estar presente em sua aula no ensino médio. De forma alguma, falo de ensinar a teoria, mas sim, sua aplicação prática, por exemplo, no entendimento de determinados enunciados, na elucidação de implícitos e pressupostos, enfim, na percepção de que a língua só acontece, de fato, no uso que se faz dela e esse uso está sempre repleto de intenções. Intenções estas nem sempre explícitas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário