QUANDO DIZER É
FAZER
AUSTIN
Ao
sintetizar a obra de Austin, vou, inevitavelmente, destacar sua importância
para os estudos da linguagem. Austin é responsável por estabelecer os
fundamentos do que seria a pragmática ou a linguística do uso. Seu papel,
portanto, para os estudos linguísticos, é de suma importância.
Relembrando
Bakhtin, entretanto, é preciso observar que não há um discurso realmente
fundador, isto é, Austin não elaborou sua teoria a partir do vácuo conceitual.
O teórico teve predecessores que o alimentaram no sentido de repensar a língua
e seus estudos. Um desses predecessores foi Jakobson que, como sabemos, ao
falar em funções da linguagem, perpassa os usos possíveis dela. Ao afirmar que
a linguagem tem como uma de suas funções pensar a organização da mensagem
(poética) ou convencer/persuadir o interlocutor (conativa), Jakobson está, na
verdade, lançando o embrião do que seria, na teoria de Austin, os diferentes
usos que o falante faz da língua e os diferentes efeitos provocados por esse
uso.
Em
“Quando dizer é fazer”, temos plenamente desenvolvida a ideia dos enunciados
performativos, aqueles que ao serem enunciados executam juntamente uma ação,
como é o caso de ‘prometer’, ‘apostar’, ‘desafiar’. Temos, ainda, a
desvelamento daquilo que está por trás do que se diz: os atos de fala.
Austin
propõe a existência de três atos que circunscrevem o enunciado: locutório,
ilocutório e perlocutório. O ato locutório, ou locucional diz respeito ao que
efetivamente é dito/enunciado, aquilo que toma corpo na língua, que usa sons,
gestos, entonação. O ato ilocutório, ou ilocucional está no campo psicológico,
isto é, diz respeito ao que se quis dizer com o que se disse, ou, em outras
palavras, com as intenções do falante. Finalmente, o ato perlocutório ou
perlocucional está no campo da interação e diz respeito ao efeito de sentido
provocado no ouvinte/receptor; em outras palavra e de modo simplista, o ato ou
efeito perlocutório diz respeito ao que se entendeu do que se disse.
Grosso
modo, os três atos podem ser sumarizados como se segue:
·
Ato locutório/locucional à aquilo que, efetivamente, é
dito / enunciado;
·
Ato ilocutório/ilocucional à aquilo que se quis
dizer com o que se disse / enunciou;
·
Ato/efeito perlocutório/perlocucional à aquilo que se entendeu
do que se disse / enunciou.
Jamais me
esquecerei do Dr. Alfredo, professor de Latim do meu primeiro ano de graduação,
que, para pedir que eu lhe buscasse um apagador, criou o seguinte diálogo:
- Leandro, por
favor, tire a cueca e apague a lousa.
Perplexo,
indaguei:
- Como assim,
professor? Tirar minha cueca?
E ele, então,
convidou-me para a sua mesa, puxou outra cadeira e pediu que eu me sentasse:
- Suponha que nós
estamos jantando, o saleiro está ao lado do seu prato e eu digo “nossa, minha
salada está sem sal”, o que eu quero, Leandro?
- O saleiro.
- Então, vá
buscar um apagador para mim!
Não sabia
ainda, mas estávamos no meio de um complexo ato de fala ou de vários. Ao pedir
que eu tirasse a cueca (ato locutório), ele queria, na verdade, que eu buscasse
um apagador para apagar a lousa (ato ilocutório). Eu, entretanto, não entendi a
intenção do professor e já estava a ponto de tirar a cueca realmente. O exemplo
do restaurante foi esclarecedor. Ao afirmar que a salada estava sem sal, ele
queria de fato pedir que eu lhe passasse o saleiro e não, apenas, fazer uma
constatação.
Bem mais
tarde, fui entender meu professor, ao conhecer as ideias de Austin e os atos de
fala.
Austin
contribuiu, como já disse, enormemente para a Linguística, principalmente
porque, a partir de seus estudos, outros teóricos desenvolveram esforços no
sentido de entender a língua em funcionamento. A linguística deixava, assim, de
ser um estudo do sistema, como propôs Saussure e Chomsky, e passava a ser um
estudo do uso. Obviamente, não se pode desprezar o sistema por completo;
trata-se, na verdade, de devolver-lhe ao seu devido lugar – não o centro do
processo linguístico, mas o alicerce sobre o qual se erguem os edifícios das
falas, dos usos, dos discursos.
Minha
pesquisa se volta para as crenças que futuros professores de português trazem
consigo sobre leitura e seu ensino. De forma alguma, preocupa-me o sistema, mas
o uso. Quero entender o contato que esses alunos de Letras tiveram e têm com a
leitura em suas vidas pessoais e em sua escolaridade e de que forma este
contato moldou e/ou molda aquilo que eles pensam sobre leitura e sobre como
ensiná-la. Foi, certamente, no uso da leitura que essas crenças se fundaram e
será, também, no uso que elas se manifestarão mais fortemente. Por isso, aliás,
meus instrumentos de coleta de dados privilegiam situações de
ensino-aprendizagem e não, simplesmente, o conceito de leitura. Acredito que no
uso em sala de aula, os conceitos e as concepções emergem mais verdadeiramente.
Assim, determinado professor pode dizer que acredita numa concepção
interacionista da língua e, se isso não for verdade, ser desmentido pela sua
ação em sala de aula; em outras palavras, o seu dizer e o seu agir (usando
palavras de Austin) não se encontram.
A
leitura de Austin deveria fazer parte de todos os cursos de graduação em
Letras, ao lado de outros grandes linguistas. Acredito que o conhecimento traz
poder e autonomia, um professor que conhece as teorias que fundamentam o seu
dizer e o seu agir terá, sem dúvida, mais condição de exercer com competência
seu ofício. Por outro lado, acredito que tais teorias precisam estar sempre
vinculadas à sala de aula, pois não podemos nos esquecer de que estamos em um
curso de formação de professores. De nada vale discutir os atos de fala se o
aluno de Letras não consegue entender como isso poderia estar presente em sua
aula no ensino médio. De forma alguma, falo de ensinar a teoria, mas sim, sua
aplicação prática, por exemplo, no entendimento de determinados enunciados, na
elucidação de implícitos e pressupostos, enfim, na percepção de que a língua só
acontece, de fato, no uso que se faz dela e esse uso está sempre repleto de
intenções. Intenções estas nem sempre explícitas.
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