A leitura acompanha o homem
desde que o homem habita este planeta. Numa acepção ampla, ler significa
apreender elementos ou estímulos externos e processá-los de modo a construir, a
partir deles, sentidos. Pensando assim, o homem primitivo, para sobreviver,
precisou ler a natureza hostil em que habitava. O homem antigo precisou ler o
inimigo para sobreviver às guerras e manter seus territórios. O homem medieval
precisou ler a terra para dela tirar seu sustento e, por outro lado, acabou
sendo impedido de ler (e agora falo de um sentido mais restrito) para fins de
adquirir conhecimento se quisesse continuar vivo. O homem moderno precisou ler
o próprio homem para se fazer moderno. E o homem contemporâneo precisa ler o
virtual, o espaço, o hiperespaço para ir além do próprio homem.
O
fato é que nunca na História da Humanidade a leitura e a escrita estiveram tão
ao alcance de todos como hoje. Nunca antes o homem pôde dispor dessas duas
armas de guerra, dessas duas ferramentas de trabalho, dessas duas tecnologias de
desenvolvimento como faz de forma até banal atualmente. Esse fenômeno tem a sua
própria historicidade em tem seus dois lados – positivo e negativo – como qualquer
outro fenômeno humano.
O
lado positivo está no livre acesso de todos ao mundo das palavras escritas,
antes um privilégio de poucos. Sabemos que a escrita e a leitura sempre
significaram uma importante fronteira entre quem detinha ou não o poder. Por
outro lado, toda essa democratização levou a uma banalização da informação e,
consequentemente, do conhecimento. Confundem-se, na verdade, esses dois
conceitos. Informação é o dado por si, ao passo que conhecimento é o dado
transformado pela ação do homem. Para haver conhecimento, é necessário que o
homem o construa; que o homem, em outras palavras, execute uma ação, desenvolva
um processo que parte, sem dúvida da informação, mas que a extrapola. O mundo
atual parece parar na informação, parece satisfazer-se com ela, uma vez que se
tornou tão fácil alcança-la.
Ao
falar de construção de conhecimento como processo ativo que decorre da
intervenção do homem na informação disponível, estou, na verdade, trazendo à
tona os conceitos de inter e hiperdiscurso. O primeiro diz respeito,
exatamente, a esta teia de sentidos que se vai elaborando à medida que se vai
costurando textos diversos na tentativa de se construir conhecimento.
Aproximo-me da noção de dialogismo proposta por Bakhtin. O segundo conceito, o
de hiperdiscurso, diz respeito ao movimento do interdiscurso no hiperespaço. É
o hiperdiscurso que garante que o hipertexto mantenha os fatores de
textualidade propostos por Beaugrande e Dressler, a saber: coesão, coerência,
informatividade, aceitabilidade, intencionalidade, situacionalidade,
intertextualidade. Por algum tempo defendeu-se que o texto para ser texto
precisava possuir, necessariamente, esses fatores; hoje, entretanto, já não se
pensa assim, mas ainda se admite a importância desses aspectos no estudo da
textualidade. Sendo textualidade a unidade semântica, estrutural (linguística),
discursiva e pragmática de um texto, ela não deixa, de maneira alguma, de
existir no hiperespaço. Em outras palavras, o hipertexto também é dotado de
textualidade ou se preferirmos, de hipertextualidade.
O hiperdiscurso pode ser
entendido como o caminho digital ou virtual que o leitor vai construindo em sua
leitura no hiperespaço. Seria o mapa da sua navegação, mas não um mapa
previamente desenhado, que ele deve seguir; e sim o mapa que ele mesmo vai
desenhando conforme vai navegando e descobrindo novos mares.
Mesmo
diante das infinitas possibilidades que o hiperespaço abre, o leitor faz
escolhas que seguem uma orientação não aleatória, mas guiada por uma intenção e
uma situação que são inter e hiperdiscursivas; inter, pois resultam de
múltiplas combinações discursivas dialogando entre si e hiper porque tais
combinações e diálogos se dão no hiperespaço. Ainda pensando nos fatores de
textualidade, é possível perceber que o leitor, para de um link abrir um novo
(hiper)texto , precisa estar dotado de determinada carga informativa. O que
quero dizer é que para fazer os saltos de um texto a outro – movimento típico no
hiperespaço – o leitor precisa ter certo grau de informatividade, ou seja, ele
só clica no link se encontrou a informação que queria ou a dúvida, o
questionamento que lhe instigou. De qualquer forma, o aspecto informatividade
(seja por sua satisfação ou por sua falta) está relacionado com o ato de clicar
no link que levará o leitor a um novo (hiper)texto. Este novo (hiper)texto pode
se mostrar, por sua vez, aceitável ou não aos interesses do leitor, pois embora
o link seja o mesmo, o inter/hiperdiscurso construído para cada navegação é
único e a cada nova leitura é um novo significado sendo criado para o (hiper)texto
que se abre e nem sempre ele satisfará o leitor. Aceitável ou não neste novo
cenário (hiperespaço) tem a ver com o hiperdiscurso em construção e não com
regras pré-estabelecidas (gramaticais, por exemplo). Finalmente, o fator
intertextualidade dispensa grandes elucubrações, pois a noção de intertexto
está no cerne da própria existência do hipertexto e do hiperdiscurso. Não
haveria hiperdiscurso se não houvesse intertextualidade, ou seja, se os textos
não tivessem a capacidade inerente de dialogarem entre si não seria possível
pensar em um “hiperdiálogo” universal entre texto ad infinitum que é o que acontece no hiperespaço.
Nem
tudo que parece novo é, de fato, tão novo assim.
O homem muda a tecnologia
que muda o homem que se adapta a ela que o muda novamente e assim por diante. O
homem vai transformando seu meio ao mesmo tempo que vai sendo por ele
transformado e tem sido assim desde sempre. Mas alguns princípios permanecem.
Dizer que o hiperdiscurso é que constrói as pontes que ligam os sentidos do
hipertexto é para os dias de hoje o que foi há algum tempo dizer que o discurso
é que construía as pontes dos sentidos do texto. Ampliou-se o alcance da mão do
homem, do seu olhar e do seu pensamento. Ampliou-se muito a sua capacidade de
entendimento do universo macro e microscópico. Mas o hipertexto não é,
absolutamente, uma invenção nova. A intertextualidade existia antes da
internet. O que a internet fez foi facilitar o diálogo entre os textos, foi
acelerar as conexões, foi dinamizar os contatos. Não inventou, apenas aperfeiçoou.
O hiperespaço estava lá o tempo todo só esperando para ser explorado, do mesmo
modo que a América sempre esteve aqui, o tempo todo, só esperando ser explorada
e não inventada. Isso não diminui o mérito do descobridor, só coloca as coisas
em seu devido lugar. Não podemos, em nome de um tecnologismo quase patológico,
esquecer todo o esforço que antecedeu o que vivemos hoje. Milhares de
pesquisadores escreveram suas teses em máquinas de escrever, amassando centenas
e centenas de folhas de sulfite para que eu, hoje, possa, simplesmente, apertar
uma tecla e corrigir um erro na tela do computador – isso não pode ser
desprezado. Esses mesmos pesquisadores iam às bibliotecas e faziam saltos de um
a outro livro, liam notas de rodapé, analisavam sumários, faziam, em outras
palavras uso do hiperdiscurso, do mesmo jeito que eu hoje faço; obviamente com
menos recurso, com menos velocidade, limitados ao espaço físico. Hoje eu executo
o mesmo processo, mas com o universo inteiro ao meu dispor, com a liberdade do
infinito, com o hiperespaço todo para explorar e tudo isso a um click de
distância.
Assustador e maravilhoso.
Poxa; que bacana.
ResponderExcluirEu gostei e serviu como uma aula de revisão ;)
Espero que esteja tudo bem por aí.
=*
BRUNO SOARES DE OLIVEIRA
eu gostei, muito legal!!!
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