TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

terça-feira, 14 de maio de 2013

A Pequena Fábula de Franz Kafka: análise de um gênero discursivo na perspectiva bakhtiniana


A Pequena Fábula de Franz Kafka: 
análise de um gênero discursivo na perspectiva bakhtiniana



ABSTRACT: this research intends, according to Bakthinian theories of utterance, to analyze the text “Small fable” from Franz Kafka. It’s necessary, thus, a very careful observation of the genre to which the utterance belongs, besides the analyses of the constitutive elements of this utterance/genre, as well as the communicative sphere to which this genre belongs.

KEY WORDS: Dialogism; discourse; fable


0- INTRODUÇÃO
Diversos têm sido os estudos sobre a obra de Franz Kafka, e certamente sob variadas perspectivas teóricas. Entretanto, ainda que amplamente estudada, retomar a obra de Kafka como objeto de um estudo (tema) significa sempre um novo processo de enunciação, uma nova visão teórico-analítica, capaz não de extenuar por completo o objeto, mas de tematizá-lo de forma a, pelo menos relativamente, esgota-lo, pois segundo Bakhtin (1997, p. 300):

Teoricamente, o objeto é inesgotável, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função de uma abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor.

Observando a afirmação de Bakhtin e diante do objeto de estudo aqui proposto, posso afirmar que esta análise possui uma abordagem enunciativa do problema, ou seja, uma abordagem segundo a qual a análise se faz, considerando o uso da língua numa situação concreta de comunicação. A enunciação, segundo Machado (1995, p. 67), consiste na “unidade real do discurso comunicativo dotado de uma determinada forma genérica que nos é dada livremente, no uso corrente da língua materna que adquirimos antes mesmo dos estudos teóricos de gramática”.
                Ainda em relação ao tratamento do objeto aqui tematizado, devo atentar, como afirma Bakhtin, para a questão dos objetivos. Assim, este trabalho possui o objetivo de tecer uma análise do texto “Pequena Fábula” de Franz Kafka, tomando como base teórica, a noção de dialogismo, amplamente presente na teoria bakhtiniana. Stam (1992, p. 72), ao falar de dialogismo, afirma que “no sentido mais amplo, o dialogismo se refere às possibilidades abertas e infinitas geradas por todas as práticas discursivas de uma cultura, toda a matriz de enunciados comunicativos onde se situa um dado enunciado”.
                É preciso, desse modo, considerar quais são as características desse dialogismo que servirão de base de raciocínio na análise aqui proposta. Stam (1992, p 76), ao citar exemplos desse dialogismo, fornece os parâmetros adotados nessa análise, sendo eles: “discurso polifônico, polêmica interna oculta, autobiografia polêmica, confissão, discurso que olha de lado e réplica sarcástica”.
                Fica assim definido o objeto de estudo deste trabalho/enunciado. Não busco, de forma alguma, qualquer tipo de esgotamento do objeto, o que seria, como já foi citado anteriormente, inviável. Objetivo apenas realizar uma análise das características intrínsecas ao dialogismo bakhtiniano presentes no texto/enunciado de Franz Kafka.

1.       FRANZ KAFKA: UM FABULADOR MODERNO
Anders (1969, p. 16) questiona a visão onírica e exótica com que alguns críticos têm falado da obra de Kafka, segundo ele “Kafka não é esteticista, santo ou sonhador, nem forjador de mitos ou simbolista – pelo menos nada disso em primeiro plano: é um fabulador realista”.
Pensar num Kafka “fabulador realista” parece estranho: afinal, pode um fabulador ser realista? Não seria próprio da fábula o avesso da realidade? A troca de papéis? Se a fábula caracteriza-se essencialmente pelo humano e o não-humano em confronto numa realidade onde animais falam, pensam, sentem; é possível, assim, ser fabulador e ser realista?
Na verdade, segundo Anders (1969, p. 17), “o método de Kafka consiste, pois, em suspender através da troca de etiquetas, os preconceitos ligados a etiquetas, possibilitando, com isso, julgamentos não preconcebidos”. Assim, a fábula em Kafka soa como um instrumento, uma ferramenta para corromper preconceitos, para renomear coisas e situações, para provocar estranhamento. Ainda segundo Anders (1969, p. 17)

Em Kafka, o inquietante não são os objetos nem as ocorrências, mas o fato de que as criaturas reagem a eles descontraídamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais. Não é a circunstância de Gregor Samsa acordar de manhã transformado em barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente – a trivialidade do grotesco – que torna a leitura aterrorizante (...) De fato, nada é mais espantoso do que a fleuma e a inocência com que Kafka entra nas estórias mais incríveis.
       
Eis o espantoso e contraditório em Kafka, ser fabulador e ser realista ao mesmo tempo. Em “Pequena fábula” não é o fato do rato dialogar com o gato que provoca o estranhamento, mas sim, o tratamento realista, natural, quase cotidiano que o discurso possui. “O herói não pertence ao mundo. É justamente nessa ex-centricidade que consiste o realismo kafkiano” (ANDERS, 1969: 27). Todo esse tratamento do tema, em Kafka, não é, de forma alguma, despretensioso, pelo contrário, está repleto de intenções; Anders (1969, p 21) afirma que: “Se Kafka deseja afirmar que o ‘natural’ e ‘não-espantoso’ de nosso mundo é pavoroso, então ele faz uma inversão: o pavor não é espantoso”.
Este estranho método de estranhamento (com todo o direito de ser repetitivo) de Kafka se deve em parte à sua própria história, sua própria personalidade, a esse respeito Anders (1969, p 23) expõe que Kafka

Como judeu, não pertencia totalmente ao mundo cristão. Como judeu indiferente – pois foi-o a princípio, não se integrava completamente com os judeus. Por falar alemão, não se amoldava inteiramente aos tchecos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava de todo aos alemães da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário público de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado.

                Uma personalidade tão particularmente dotada de antagonismos não poderia ter produzido uma literatura menos antagônica, contraditória, polêmica.
                No prefácio da obra “Nas Galerias”, coletânea de contos e fábulas, de onde retirei “Pequena fábula”, Flávio R. Kothe ( 1989) afirma que  o que se tem de lugar-comum nesse tipo de fábula é que o mais fraco (no caso o camundongo) saia vitorioso. Kafka, ao inverter os papéis e subverter as expectativas do leitor, provoca, polemiza, cria o conflito. Na verdade, precisamos pensar o que representa social e politicamente a vitória do fraco nas fábulas. Existe uma espécie de compensação, ou de ilusão de que um dia a ordem socioeconômica irá se inverter, que os dominados finalmente tomarão o poder, essa é a ideologia existente por trás das inocentes fábulas; o que elas pregam é que não há porque se preocupar, fazer rebeliões, greves, motins; no fim, o pobre, o fraco, o submisso e dominado há de receber sua recompensa (mesmo que seja no paraíso segundo o pensamento cristão). Kafka, entretanto, por tudo que já foi dito, não poderia concordar e contribuir para a disseminação de uma ideologia irreal, por isso, rompe com o que se espera, e propõe uma ordem real das coisas, onde os dominantes exercem seu poder e os dominados são esmagados, a menos que mudem seu caminho. O estranho e irônico é que esse novo caminho é, uma vez mais, proposto pelo dominante: “Você apenas precisava alterar a direção da corrida – disse o gato, e devorou-o”.

2.       FÁBULA: UM GÊNERO SECUNDÁRIO
Adotar um caráter bakhtiniano de análise significa estender o olhar além do meramente textual, implica observar aspectos referentes ao gênero escolhido, às características desse gênero (construção composicional, conteúdo temático e estilo segundo Bakhtin) e sua operacionalização. Antes de falar do gênero fábula, entretanto, quero observar alguns elementos importantes em relação ao processo narrativo de produzir discurso. A esse respeito, Araújo afirma que

A situação de enunciação apresenta problemas peculiares, quando se trata de estudar o discurso literário. Os elementos que definem a situação de enunciação comum – um enunciador, um destinatário, um momento e um lugar particulares – revestem-se de máscaras apropriadas ao jogo de cena literária.

                O discurso literário foi o objeto central de estudo de Bakhtin, mais precisamente o gênero romance. Foi estudando o romance que Bakhtin tratou da questão dos gêneros, do enunciado concreto, do estilo, do tema, da expressividade enfim, de uma série de conceitos relacionados ao texto e ao discurso; essa discriminação aqui realizada entre texto e discurso tem base no que postula Marcuschi (2003, p. 24), segundo o autor: “Texto é uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instancia discursiva”.
                Ao tratar dos gêneros, especificamente, Bakhtin (1997) faz uma distinção entre gêneros primários (de elaboração simples, cotidiana) e gêneros secundários, que, segundo o autor, surgem numa situação de comunicação mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente na escrita.
                Os gêneros literários, dentre eles, a fábula, fazem parte dos chamados gêneros secundários que, ainda segundo Bakhtin (1997, p. 281), durante o processo de formação “absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstancias de uma comunicação verbal espontânea”. Assim, por exemplo, quando um texto narrativo (gênero secundário) faz uso de réplicas do diálogo (gênero primário), reestrutura esse gênero, inserindo-o numa nova enunciação, como forma de citação (discurso de outrem), vale lembrar o que Bakhtin fala sobre citação em Marxismo e filosofia da linguagem, segundo o autor “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (1995 p. 144).
Em “Pequena fábula” o que encontramos é exatamente a réplica de um diálogo cotidiano entre um camundongo e um gato, tratado - como próprio do estilo kafkiano - o mais naturalmente possível. Aqui, as falas dos animais, cada uma com seu tema próprio, tornam-se tema para o enunciado maior: a fábula de Kafka que, insere-se por sua vez, no diálogo humano e social, no qual encontramos outros discursos literários ou não. Assim, como diz Souza (1999, p. 113) “o discurso citado é um tema do nosso discurso. Enquanto um enunciado citado, ele apresenta o seu próprio tema, e assim integra o contexto do discurso do autor – o nosso discurso”.
                Não cabe aqui nenhuma espécie de tratamento tipológico ou estruturalista da narração, mas sim, uma rápida exposição do pensamento bakhtiniano em relação ao gênero secundário, no qual se insere a fábula, objeto deste estudo. Entretanto, acredito que vale uma rápida observação de algumas características do gênero fábula que certamente contribuirão para esta análise.

3.       FÁBULA
Dentre os inúmeros gêneros literários existentes, a fábula está entre os mais antigos. Segundo Coelho (1997, p. 147), a fábula é

Nascida no Oriente, a fábula vai ser reinventada no Ocidente pelo grego Esopo (séc VI a.C.) e aperfeiçoada séculos mais tarde pelo escravo romano Fedro (séc. I a.C.), que a enriqueceu estilisticamente. No séc. XVI, ela foi descoberta e reinventada pó Leonardo da Vinci (mas sem grande repercussão fora da Itália e ignorada até bem pouco tempo). No séc. XVII, La Fontaine reinventou a ‘fábula’ (a partir do modelo latino e do oriental oferecido pelos textos do indiano Pilpay), introduzindo-a definitivamente na literatura ocidental

                Uma característica essencial da fábula é a atribuição de qualidades humanas a animais, para Coelho (1997, p.148) “a peculiaridade que distingue a fábula das demais espécies metafóricas ou simbólicas é a presença do animal, colocado em situação humana e exemplar”, os personagens são assim, “símbolos, isto é, representam algo num contexto universal (por exemplo: o leão, símbolo da força, majestade, poder; a raposa, símbolo da astúcia; o lobo, do poder despótico etc)” (COELHO, 19997, p. 148).
                Por trás da aparente inocência da fábula, há sempre um caráter crítico, além de uma lição de moral, como sugere Góes (1984, p. 144)

A fábula é uma forma literária indireta na exposição de sua expressão, de caráter geralmente crítico, de análise precisa e tradução sintética dos fatos que são tanto objetivos quanto eloqüentes para o entendimento. Transmite a crítica ou conhecimento em forma impessoal, sem tocar ou localizar claramente o fato ou a personagem

O que se percebe é uma certa tendência a amenizar ou mascarar a voz (crítica) do autor por meio do uso de elementos como animais que já possuem uma forte carga semântica, por exemplo, a raposa, que já carrega em si o estigma de ser astuta, esperta, traiçoeira. Assim, ao invés do autor dirigir uma crítica direta à determinada conduta social, a alguém ou a algum grupo que age de forma, digamos, desonesta, ele o faz utilizando a figura da raposa. Desse modo, o autor utiliza uma outra voz para expressar sua crítica e se exime, de certa forma, da responsabilidade por isso, afinal, não foi ele quem disse primeiramente que a raposa é astuta ou desonesta, essa característica já existe num espaço de conhecimento social comum. Percebe-se aqui a forte presença do caráter polifônico do discurso e do dialogismo bakhtiniano: o autor que utiliza a figura da raposa em seu discurso dialoga, na verdade, com todo um conhecimento social adquirido ao longo de gerações e, ao atribuir fala e atitude humanas à raposa, ele a faz dialogar de dentro do texto com o universo exterior que ela representa.
                Um outro aspecto importante a ser levantado em relação ao gênero fábula é a questão da moral, principalmente porque as crianças estão em processo de construção de identidade e, para isso, estão armazenando informações de toda espécie: éticas, morais, familiares, valores enfim que carregarão consigo para sempre. Burgess (2001, p. 09) diz que “um valor é algo que alça nossas vidas acima do nível puramente animal – o nível de conseguir comida e bebida, fazer filhos, dormir e morrer”. 
                Nesse sentido, é de essencial importância levar em consideração o que Bakhtin (1997) chama de “atitude responsiva ativa”, ou seja, devemos estar conscientes de que as crianças, ao lerem, não são sujeitos passivos que recebem as informações exatamente da maneira que o enunciador as concebeu. As crianças interagem com o discurso de forma ativa, criando seus próprios significados, significados esses que são resultado de suas experiências de vida, do diálogo com outros textos, de suas crenças pessoais e de outras influências externas (família, escola, amigos etc). Assim, é importante evitar mensagens duplas, ambíguas, que possam gerar conflito ou dupla interpretação. Sabemos que é próprio do discurso literário ser ambíguo, polifônico, complexo, entretanto, como nos lembra Bakhtin (1997), dominar determinado gênero discursivo implica conhecer os elementos constitutivos desse gênero, dentre esses, a quem se destina tal gênero.  Góes (1984, p. 148), a esse respeito, afirma que as fábulas


Devem reunir um mínimo de condições que não permitam confusões interpretativas naquilo que pretendem ensinar; conceito claro e objetivo, sobriedade narrativa; linguagem depurada de toda terminologia vaga, abstrata, inaccessível à criança.

                “Tom e Jerry”, personagens de desenhos animados, são exemplos disso. Inegavelmente as crianças torcem pelo ratinho, certamente por identificação, o ratinho é menor que o gato (que pode representar o adulto que repreende, que corrige, que persegue), é mais frágil, é mais esperto enfim, assemelha-se mais ao mundo infantil do que o gato. O que as crianças não sabem é que o rato transmite doenças, que é sujo e que, numa visão mais naturalista, dentro da cadeia alimentar, é presa do gato que é o predador e, só faz, seguir seus instintos naturais de sobrevivência. Todos nós, seres carnívoros, alimentamo-nos de seres que matamos, então somos seguramente todos muito cruéis. Não penso que as crianças deveriam odiar o rato e querer seu fim, mas questiono somente os conceitos e preconceitos que estão embutidos nas fábulas em geral.
                Kafka, como já foi dito, rompe com essas idéias fossilizadas a respeito de predadores e presas nas histórias infantis, inverte o fluxo ideológico e permite que o camundongo seja devorado pelo gato, assim, os papéis do estúpido e do esperto invertem-se. O efeito que se tem é de estranhamento em princípio, e de realismo concreto, traços característicos das fábulas kafkianas.

4. DIALOGISMO EM “PEQUENA FÁBULA”
                Fazer uma análise científica de uma obra literária significa situar-me na delicada fronteira de dois discursos, bem como de dois papéis. Falo exatamente do discurso técnico e do discurso artístico e dos papéis de leitor e de analista. Burgess (2001) fala desse tênue limiar entre ciência e arte como se tratando de duas possíveis leituras de uma mesma verdade. O artista e o cientista percebem o mundo e as coisas nele de forma diferente, mas a verdade é uma só, que segundo Burgess (2001, p. 09) é um espetáculo

Que está por trás de um espetáculo exterior (...) O sol se levanta a leste e se põe a oeste. Isso é o que vemos, isso é o “espetáculo exterior”. No passado, o espetáculo exterior era visto como a verdade. Mas então veio um cientista para questiona-lo e enunciar em seguida que a verdade era muito diferente da aparência: a verdade era que a Terra girava e o Sol permanecia imóvel – o espetáculo exterior estava dizendo uma mentira.

Não quero, entretanto, deixar de pensar que todo esse buscar a verdade está carregado de beleza e arte. No fundo, cientista e artista buscam a mesma coisa: a beleza da verdade universal, cada um a seu modo, com seu olhar e sua arte-ciência.
Como já foi dito anteriormente, quero buscar em Stam (1992) os parâmetros norteadores dessa análise: discurso polifônico, polêmica interna oculta, autobiografia polêmica, confissão, discurso que olha de lado e réplica sarcástica. Passo agora a observar cada um desses itens na obra de Kafka

4.1 – Discurso polifônico
       
“Pequena fábula” é um texto polifônico primeiramente por ser entrecruzado por várias vozes. O texto de Kafka é marcado pela presença do discurso direto, na verdade é constituído apenas de um diálogo entre os dois animais (personagens – o gato e o camundongo). A voz do narrador, assim, personifica-se na fala dos animais. Embora o discurso tenha as características próprias do discurso direto (limites ou fronteiras nítidas entre o discurso citado e o discurso que cita), o que se tem na verdade em “Pequena fábula” é uma fala do camundongo que não se dirige ao gato, mas a si mesmo. Marinho (1997), ao analisar os mecanismos enunciativos em “Vidas Secas”, apresenta alguns aspectos importantes em relação ao aspecto polifônico do discurso, aspectos que podemos observar também no texto de Kafka:

a)       Personagem apresentada como uma autoconsciência
Toda a fala do camundongo representa exatamente essa autoconsciência: “Ah – disse o camundongo -, a cada dia o mundo se torna mais estreito. No início ele era tão amplo que eu tinha medo, continuei correndo e fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à direita, muros ao longe, mas esses longos muros correm tão rápido um na direção do outro que já estou no último quarto e ali, no centro, está parada a armadilha para dentro da qual vou correndo”.
Primeiramente em “a cada dia o mundo se torna mais estreito”, percebo a tomada de consciência de que o mundo se estreita, inerente a essa noção, existe uma voz que a entrecruza, podendo ser ao mesmo tempo a voz de uma criança que começa a perceber que o mundo não é feito de fantasia, de sonho, mas sim, de realidade, e que essa nos põe limites todo o tempo, ou a voz social de uma classe reprimida que se arrisca a se perceber como tal.
Em seguida, quando o camundongo diz “mas esses longos muros correm tão rápido um na direção do outro que já estou no último quarto”, percebemos a conscientização em relação ao tempo e ao espaço (cronotopo), assim, o que parecia inicialmente confortável (“fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à direita muros ao longe”) torna-se o motivo de sua preocupação, de sua angústia, é como se o camundongo tomasse consciência de sua situação real e visse que o que ele tinha antes era apenas uma falsa segurança transmitida propositadamente pela voz do dominador que ele carrega gravada consigo inconscientemente.
Finalmente, a percepção de que caminha para uma armadilha: “ali, no centro, está parada a armadilha para dentro da qual vou correndo”. A utilização do verbo no gerúndio representa a continuidade, a progressividade de uma ação; o que significa que, apesar de tomar consciência de que corre para o seu fim, o camundongo não consegue parar . É como se essa conscientização viesse tarde demais, num momento em que já não há o que fazer, que o que resta é aceitar os fatos, o destino, a “cruz” ou qualquer coisa assim, colocada em nosso subconsciente através das gerações e que, como um tabu fossilizado, tornou-se uma verdade inviolável, indiscutível e imutável: ao pobre cabe ser pobre somente.

b)       Representação do homem no momento de crise e de reviravolta de sua alma

Tomar consciência deveria ser um ato de reviravolta, entretanto não é o que acontece em “Pequena fábula”. O camundongo está o tempo todo em crise, é como se o seu falso mundo confortável e seguro estivesse desabando, como se aquilo que se havia mostrado certo fosse na verdade uma projeção de sua mente que assim desejava enxergar e agora, diante da verdade dos fatos o que lhe restava era “dar uma reviravolta”, tomar uma atitude, entretanto, essa reviravolta não vem e o camundongo acaba devorado pelo gato.

c)       Orientação em relação ao discurso do outro e à consciência do outro

O camundongo, como já foi dito, elabora um discurso para si mesmo, é como se ele refletisse e tomasse consciência de uma série de fatos que jamais percebera antes, mas que de nada lhe servirão agora. Do outro lado, temos o gato, que também toma consciência da existência do rato, de seu questionamento e de sua inércia diante de seu destino. O discurso do gato, por sua vez, orienta-se em relação ao do rato, existe, na verdade, para o rato e, soa ao mesmo tempo como um eco da voz do camundongo, como se fosse a conscientização final do que fazer diante de toda a reflexão que ele vinha fazendo e, significa também, uma voz externa, a voz do dominante, aquele que tem o poder para livrar o dominado de seu estado de dominação, mas não o faz, exatamente por ser sua posição a mais confortável. O gato toma consciência das reflexões do rato, mas não reflete em momento algum sobre seu papel, sobre sua própria existência, como se ela toda se resumisse ao simples fato de observar o tolo rato, manipula-lo, devora-lo e, ainda ironicamente, entrar em sua mente e dizer o que ele deveria ter feito: “você apenas precisava alterar a direção da corrida”.
É polifônico, dessa maneira, o discurso, uma vez que se ouve juntamente com as vozes das personagens, vozes sociais representadas pelas personagens, respectivamente as vozes de dominados e dominantes numa sociedade capitalista.

4.2 – Polêmica interna oculta
               
                Todo o discurso do camundongo é fortemente marcado por uma polêmica interna oculta. Ele parece estar diante de acontecimentos reais da vida pela primeira vez e não saber como agir diante deles. Polemiza assim com suas próprias crenças, aquilo que lhe trazia conforto agora lhe serve de armadilha. A percepção de que existe uma armadilha fatal e de que se dirige a ela desencadeia no camundongo uma série de reflexões, entretanto, toda essa polêmica não é suficiente para livra-lo de sua armadilha. O rato parece seguir algum programa, algum comando interno, na verdade, internalizado, porque o que se tem aqui representado é um confronto íntimo entre a voz do rato que toma consciência de si mesmo e uma voz social internalizada: a de que ele é rato e de que ratos são assim mesmo, ratos são apenas o alimento dos gatos. Essa voz última vence e o rato que, embora se perceba inserido nesse jogo de dominador e dominado, prossegue em seu papel de vítima, de fraco.

                4.3 - Autobiografia polêmica

                Como diz a voz da sabedoria popular, a vida toda nos passa diante dos olhos minutos antes de morrer. Assim foi com o nosso personagem. Temos, em uma única fala, a biografia do camundongo. Nasceu, cresceu, criou seus próprios muros, aprisionou-se neles e agora se encaminha para sua própria armadilha. Muitas vezes fazemos isso conosco quando criamos e alimentamos preconceitos, acabamos por nos fechar em paredes virtuais que têm a função de nos manter afastados de tudo aquilo que não gostamos, não aceitamos ou simplesmente não entendemos ou não queremos entender e, no fim, ficamos presos caminhando em direção à nossa própria armadilha.
                Dentro do gato, o rato ainda é um rato, os muros que lhe cercavam deram lugar ao estômago do gato, mas talvez, ele se sinta confortável lá, afinal, já estava habituado a estar preso, a ser guiado; do estômago, segue certamente ao intestino, de lá ao reto e enfim, está livre novamente: eis a metamorfose universal: somos comidos, digeridos e excretados diariamente quando nos deixamos simplesmente dominar e, fazemos reflexões nulas que não nos levam a nada, porque reflexão sem ação é como caminhar pra armadilha: inútil.

4.4 – Confissão

                Mais uma vez, retomo a voz do camundongo, agora a percebo como confissão. O rato nos confessa seu desconforto diante da nova situação que se instaura. Ao mesmo tempo confessa sua passividade diante dela. Confessa saber que caminha para a armadilha e pior, confessa aceita-la como se fosse realmente dela merecedor. Entendo a crítica que Kafka faz às crenças em nós depositadas: acabamos por segui-las tão cegamente que, mesmo ao tomarmos consciência delas, nada fazemos.

4.5 – Discurso que olha de lado
                                                
                Como já foi dito, a voz do rato dirige-se a si mesmo, representa a sonorização de seu conflito interno. Mesmo quando fala da armadilha representada pelo gato, a ação é toda centrada em si mesmo: “a armadilha pra dentro da qual vou correndo”. O discurso do gato, por sua vez, revela-se todo voltado ao do rato. Ele está atento às reflexões do camundongo, aos seus questionamentos, sua tomada de consciência e, finalmente à sua inércia. Ao passo que todo o discurso do rato centra-se na primeira pessoa, característica própria do discurso monológico, a fala do gato apresenta-se com todas as marcas típicas do diálogo (cf. BRANDÃO, 2000): o gato responde ao rato, apresenta sugestões, aponta-lhe o caminho, a saída, mas enfim, segue seu instinto e devora-o.

4.6 – Réplica sarcástica
               
                O último elemento dessa análise diz respeito exatamente à fala do gato. Como já foi dito, seu discurso se volta ao rato, com todas as marcas tradicionais da réplica do diálogo, com um aspecto a mais, uma forte dose de sarcasmo. O gato sabe o tempo todo o que o rato deveria fazer para fugir, sabe mais, sabe que isso seria muito fácil e tranqüilamente possível, entretanto, só se pronuncia no último momento e de forma irônica, apontando o que deveria ter sido feito, quando ele sabe já não ser mais possível faze-lo.

5.       CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi dito anteriormente, o objeto é inesgotável. O texto de Kafka pode servir de tema a inúmeros outros trabalhos/enunciados e cada um será, inegavelmente, único.
O que se buscou aqui foi a percepção da presença do dialogismo bakhtiniano com as múltiplas vozes (polifonia), um discurso polêmico e o uso de réplicas do diálogo cotidiano, dentro do gênero fábula.
Kafka, com seu estilo inconfundivelmente realista e crítico, consegue transmitir o conflito entre classes sociais de forma verdadeira, como deve ser a realidade; com personagens tão comuns em nossas vidas e em nossas histórias infantis e com uma ação que, aparentemente não apresenta nenhuma novidade: um gato que devora um rato. A novidade reside exatamente no dialogismo da obra, na tomada de consciência do rato, em sua polêmica interna, sua confissão e, de certa forma, sua decisão de tomar uma atitude passiva e conformista.
Por tudo que se observou, posso concluir que o texto de Kafka é polifônico, dialoga com o mundo de outros textos e com o mundo da consciência social, que é bastante crítico e que, como em qualquer fábula, carrega uma forte lição, precisamos, apenas, estar bem atentos, para percebe-la claramente.


RESUMO:- Este trabalho busca, à guisa das teorias enunciativas de Bakhtin, analisar o texto “Pequena Fábula” de Franz Kafka, para isso, é preciso uma cuidadosa analise do gênero ao qual o enunciado pertence, além da análise de elementos caracterizadores desse enunciado/gênero, bem como da esfera comunicativa a que pertence esse gênero.
PALAVRAS-CHAVE: dialogismo, discurso, fábula

6.        REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Perspectiva, 1969.
BAKHTIN, M. VOLOCHINOV, V.N.. Marxismo e filosofia da linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: ed. Hucitec, 1995.
_____________ Estética da criação verbal, trad. Maria Ermantina G.G. Fernandes, São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRANDÃO, H. N. Texto, gêneros do discurso e ensino In: CHIAPPINI, L. (coord. Geral) Gêneros do discurso na escola: Aprender e ensinar com textos – vol, 05, São Paulo: Cortez, 2000.

BURGUESS, Anthony. A literatura inglesa – trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 2001.

COELHO, Nelly N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ática, 1997.
GÓES, Lucia P. Introdução à literatura infantil. São Paulo: Pioneira, 1984.
KAFKA, Franz. Nas galerias. Trad. Flávio R. Kothe, São Paulo: Estação liberdade, 1989.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade In: DIONÍSIO, A. P., MACHADO, A. R. , BEZERRA, M. A. (Orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna 2002.
MARINHO, Maria C. Novaes. Transmissão do discurso alheio e formas do dialogismo em Vidas Secas de Graciliano Ramos In BRAIT, Beth (org.). A construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997
SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin / Volochinov / Medvedev. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999.
STAM, Robert. Da cultura literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
                                                                                                                                                                                   



Um comentário:

  1. Análise brilhante, a genialidade de Kafka e a lógica judaico-cristã, ocidentalizada e generalizada, mesmo em um país genérico que ainda não entende suas origens e ainda não aprendeu a se questionar.

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