TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

BREVE COMENTÁRIO SOBRE O ITINERÁRIO EPISTEMOLÓGICO DA LINGUÍSTICA TEXTUAL




                                         Os estudos em Linguística Textual, em princípio – décadas de 60 e 70 - consideravam apenas a perspectiva sistêmica da língua, concentrando a análise na imanência do texto. Não importava, neste primeiro momento, nem o processo de interação nem os sujeitos envolvidos em tal interação. A preocupação maior era estabelecer os critérios para se afirmar que um texto é um texto e, a partir disso, formular uma gramática do texto.

                                        Com a virada pragmática, o texto começa a ser visto como parte de um processo, no qual os sujeitos que o constituem (produzem e compreendem) ganham importância. Esses sujeitos, entretanto, são vistos, apenas, do ponto de vista da ação verbal/social que se dá por meio do texto; isto implica pensar que esses sujeitos se constituem como tal apenas no momento da interação e quando eles são convidados pelo texto a existir – não são, portanto, sujeitos autônomos, sujeitos que preexistem ao texto. Ainda é possível considerar, portanto, que, neste segundo momento da Linguística Textual, o texto, mais que os sujeitos, é o grande objeto de estudo. O texto, vale mencionar, não mais visto como estrutura (ou macroestrutura), mas como parte de uma situação de comunicação – com intenções ilocutórias e efeitos perlocutórios – com enunciados que têm ilocução própria, mas também uma ilocução global e com um texto que é parte constituinte da ação social.

                                        A partir do que se chamou virada cognitivista, início da década de 80, é que os sujeitos passam a ser vistos como aqueles que interferem, realmente, na constituição dos sentidos de um texto – tanto para escrevê-lo quanto para lê-lo. Entretanto são vistos como seres mentais, seres que, inseridos num ambiente sociocultural, fazem uso de sua memória para agirem; fazem uso de seus esquemas cognitivos para se comunicarem (usando que se chamou de frames ou scripts). O texto se torna, assim, resultado de um processo mental de adequação do homem ao seu meio. Cultura é, então, vista como algo estanque e independente do homem – ao homem cabendo apreendê-la e agir nela adequadamente.

                                        Finalmente, na perspectiva sociocognitivo-interacionista, entende-se o homem como sujeito inserido completamente num mundo social e cultural. Este homem não é fruto da cultura e da sociedade, apenas, mas é, também, construtor deste mundo sociocultural. E este sujeito não o faz isoladamente, mas em ações compartilhadas. O conhecimento é, portanto, algo fundamentalmente social. A cognição humana passa a ser vista como algo que é, ao mesmo tempo intracognição e intercognição. A linguagem é definida como essencialmente dialógica e interacional e o texto é, nesta perspectiva, torna-se o próprio espaço da interação.
  

                                               É neste momento, apenas, quando os processos estudados deixam de ser os semânticos ou os pragmáticos e passam a ser os cognitivos, que o homem se faz, realmente, sujeito de seu discurso, com uma história que preexiste ao texto, utilizando, inclusive, esta história no estabelecimento das interações sociais de que participam. 




(reflexão escrita a partir da leitura da obra
KOCH, Ingedore G. V. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2011.)



terça-feira, 13 de maio de 2014

DISCUTINDO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL - SAUSSURE




                O Curso de Linguística Geral, de Ferdinand Saussure, está, certamente, entre os livros mais importantes da Linguística de todos os tempos e, também, entre os mais estudados e comentados por quem vai se aprofundar na ciência da linguagem. Não há quem passe por um curso de Letras sem ao menos ouvir falar de Saussure. Para alguns, o suíço está ultrapassado, para outros, ele ainda é fonte de grandes reflexões. Penso que, como qualquer grande obra, o Curso de Linguística Geral é complexo e multifacetado, isto é, não se pode analisá-lo como um bloco homogêneo com o qual se concorda ou não. Primeiramente, por se tratar de uma compilação das aulas do linguista genebrino feita por alguns de seus discípulos, além disso, por ser um marco conceitual. Como diria Bakhtin, é um discurso fundador, sendo, exatamente por isso, controverso, polêmico e complexo. É neste sentido que pretendo tecer alguns breves comentários sobre a obra: pensando em seu ineditismo, sua complexidade e na sua contemporaneidade.
                Antes de Saussure, não havia o estudo da língua e da linguagem como o entendemos hoje. Havia, essencialmente, estudos de gramática histórica e gramática comparada. A partir de Saussure, nasce uma nova ciência, com objeto e método próprios: a Linguística.
                O primeiro desafio de uma nova ciência é definir seu objeto e Saussure afirma que a Linguística não poderá se comparar à Química ou à Matemática, mas, sim à História. Com isto, ele nos liberta de uma prisão epistemológica; não ter tão definido assim qual o objeto da Linguística longe de ser um problema é um ponto positivo. Penso, aliás, que foi exatamente esta aparente indefinição que permitiu que a Linguística, no decorrer do século XX se subdividisse em tantas outras ciências (Sociolinguística, Psicolinguística, Análise do Discurso, Linguística Textual, Análise da Conversação etc) que, ao invés de fragmentarem-se mutuamente, pelo contrário, somam-se na tentativa de entender a língua e a linguagem. Prova cabal de que nosso objeto não é redutível ou calculável facilmente. Trata-se, antes, da complexidade do elemento que permite a existência de todos os outros, do próprio pensamento, como diz Saussure. É a língua que nos permite fazer ciência em todas as áreas e é a língua que nos permite metaforizar nossos próprios sentimentos; é a língua que, nos tribunais, condena ou absolve; é ela ainda o objeto de trabalho do psicanalista. Enfim, o linguista tem diante de si um objeto multifuncional e multifuncional; irredutível, pois, ao simplismo cartesiano ou ao determinismo positivista.
                Vencido tal desafio, Saussure precisou, de certa forma, negar o que era feito na área de estudos da linguagem. Para isto, ele propõe o estudo sincrônico da língua, contra o olhar diacrônico, vigente até então. Passa-se, assim, a observar a língua como ela é e não como ela vem sendo. Obviamente, o que Saussure propôs não foi o abandono da história das transformações da língua. Entendo que a proposta sassureana é colocar a diacronia a serviço do estudo sincrônico da língua, isto é, a partir da análise do que a língua é hoje, se necessário for ao entendimento do fenômeno, buscar subsídios na história, na etimologia, na evolução dos usos linguísticos. Falo de uma diacronia que completa o sentido atual da língua e não em um estudo diacrônico per se. Estava, desse modo, definido o foco da nova ciência: a língua hoje.
                A este respeito, Saussure comete o que para alguns é seu maior equívoco: centrar a ciência na língua e não na fala.
                O linguista precisou fazer uma difícil escolha epistemológica. Na estruturação da nova ciência, Saussure escolheu o sistema, em vez do uso. A língua foi privilegiada e não seu funcionamento real, como elemento de interação social. Tal falha, se é que podemos falar assim, é, entretanto, justificável, pelo seu momento histórico, pelo que se conhecia de língua até então, pela forte influência das pesquisas em ciências naturais, nas quais o idiossincrático não pode ser levado em consideração e pela necessidade de se escolher, metodologicamente, um elemento de análise mais concreto. Por isso tudo a língua se fez predominante.
                Entretanto, em alguns momentos, Saussure antecipa estudos enunciativos. Ao falar de valores, por exemplo, ele está falando do processo de enunciação, pois é na enunciação que a palavra ou a sentença ganha valor além do simples significado denotativo. Ele dá o exemplo do uso da palavra ‘senhores’ durante uma palestra ou reunião. Diz Saussure que a palavra é a mesma, porém a intenção, a entonação, ou seja, os valores a ela atribuídos são variados. Ora, o que é isso senão o enunciado em seu caráter irrepetível? Cada vez que eu enunciar ‘senhores’ será um novo enunciado, ainda que tenhamos, para a gramática, a mesma palavra ou frase. Obviamente que a tal conclusão só posso chegar hoje, após os estudos na área da Enunciação. Saussure não tinha como fazer tal afirmação, mas ele já percebia um caráter volátil na língua, algo que ultrapassa os limites do sistema e da estrutura, algo que eleva à língua ao status de elemento crucial de interação social.
                Em sua ânsia de definir um objeto para a Linguística e, ao mesmo tempo negar o que se vinha fazendo até então, Saussure estabelece o conceito de ‘signo linguístico’. A partir deste conceito, expandiram-se e ainda se expandem as diversas interfaces dos estudos da linguagem. O signo está no centro das construções enunciativas, está no centro das interações linguísticas e está no centro da teoria saussureana.
                Trata-se de algo simples para nós, hoje, mas pensando no momento em que foi, pela primeira vez definido, certamente o conceito de signo provocou grandes mudanças no pensamento acerca da língua. O signo é a junção simultânea de um significante e um significado, isto implica dizer que uma sequência sonora – uma imagem acústica (significante) só passa a ser signo se os interlocutores estabelecem para ela um sentido (significado). É o signo, também, que nos permite falar de coisas que não estão ao nosso redor, que sequer existem, pois o significado do signo é diferente do referente (a coisa real que existe no mundo). O significado é a imagem que carregamos em nossa mente do objeto, por isso Saussure insiste tanto no caráter psicológico da língua. Para ele, a língua é a representação mental do universo, melhor, ela é a soma das representações todas de todos os falantes. Ela não está inteira contida em um falante, mas na soma de todos. Diante disso, percebemos a existência de três entidades distintas, embora indissociáveis na formação do signo linguístico: o significante, o significado e o referente.
                Ainda sobre o signo, algo ainda mais simples foi evidenciado por Saussure. Falo da questão da linearidade do signo. Na verdade, linearidade do significante, isto é, esta tal imagem acústica se apresenta ocupando determinado espaço físico e cada um de seus elementos constituintes – fonemas ou letras – segue determinada ordem linear. Diferentemente do significado, que é visualizado psiquicamente em sua totalidade. Por exemplo, ao dizer ou escrever a palavra ‘mesa’, temos necessariamente uma sequência de letras e fonemas: ‘M – E – S – A’, entretanto, ao ser pronunciada, imediatamente o ouvinte resgata em sua mente, o objeto ‘mesa’ em sua totalidade.
                Finalmente, Saussure nos fala das escolhas que fazemos ao nos comunicarmos, seja dentro da palavra seja em sua relação com outras palavras. Ele nos propõe a noção de sintagma e paradigma. Para o linguista, paradigma é o conjunto das escolhas possíveis para preencher determinada função ou ocupar determinada posição na linearidade do significante (ter determinado valor). Sintagma, por sua vez, é o conjunto das escolhas efetivamente feitas no uso da língua. Assim, para a palavra ‘mesa’, temos o sintagma ‘m – e – s –a’, mas havia dezenas de possibilidades combinatórias, ou seja, paradigmas: musa / pesa / lesa / lisa / mera / muro etc. As variações paradigmáticas são infinitas. Esta capacidade gerativa será explorada posteriormente por outros linguistas, dentre eles, Chomsky.
                No nível da sentença, temos o mesmo processo; dentro de uma infinidade paradigmática, alguns sintagmas são escolhidos e efetivamente usados. Assim, por exemplo, em: ‘o menino comprou chocolate’, a posição de sujeito ‘o menino’ poderia ser ocupada por centenas de outros elementos. Do mesmo modo, o objeto direto ‘chocolate’ poderia ser alterado. O verbo poderia ser outro e assim por diante, gerando uma infinidade de combinações frasais.
                Por tudo isso é que estudar Saussure, ainda hoje, é essencial a quem pretende se aprofundar nos estudos da língua e da linguagem, ainda que seja para discordar dele. Não há como negar as profundas transformações que Saussure provocou no modo de olhar para a língua e seu funcionamento. Obviamente, muito se avançou desde 1913, quando foi lançado o Curso de Linguística Geral, ainda bem, mas muito do que se fez, senão tudo, teve influência saussureana.





                

segunda-feira, 12 de maio de 2014

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA, UM BEM NECESSÁRIO






O português do Brasil não é um. O português do Brasil são milhões. O português do Brasil somos todos nós – todos nós e nossas variações linguísticas. Variações estas que ocorrem em decorrência de determinados fatores, tais como: evolução histórica do idioma; localização geográfica; influência de línguas locais (indígenas) e estrangeiras; faixa etária; nível de escolaridade; grupos sociais etc e que representam um riquíssimo patrimônio da nossa cultura.
Antes de ser um problema, a variação linguística é fundamental para a sobrevivência de uma língua. Segundo a teoria da evolução das espécies de Darwin, está nas diferenças genéticas a chave da longevidade de uma espécie, uma vez que se atacada por uma moléstia, nem todos da espécie serão mortos. Do mesmo modo, a diversidade é o que garante que uma língua não se extinga ou não se isole – cada vez que a língua encontra uma novidade social que ela, por sua vez, precisa representar;  a língua, então, renova-se e se transforma. Assim aconteceu com todas as invenções modernas do século XX, por exemplo, e, mais particularmente, com o advento da internet e de todo o seu léxico. Variação linguística é, portanto, não só inerente às línguas, mas fundamental para a manutenção de sua existência.
Entretanto, há, ainda, muito preconceito em relação a alguns falares. A verdade é que a discriminação que certos grupos sociais sofrem estende-se ao seu falar. O pobre, o negro, o homossexual, o nordestino, por exemplo, são grupos que sofrem diversos preconceitos e o linguístico é apenas mais um. Fato é que o falar desses grupos nada tem de inferior ou errado – eles conservam a marca de sua identidade – e precisam, pois, ser respeitados e, mais que isso, valorizados.
A classe dominante não só oprime as outras economicamente, mas também linguisticamente. Privilegia-se um modelo de falar que se torna norma e quem não se submete a ele está excluído. Isso, além de cruel – posto que alija o sujeito de sua cultura – é injustificável do ponto de vista linguístico. A diversidade linguística, assim como as outras que hoje se discutem – diversidade cultural, diversidade sexual etc – é algo extremamente precioso e necessário. Somos seres diversos e, também somos seres culturais. Nossa diversidade, ao lado de nossa cultura são pontos basilares para a constituição de nossa identidade – cercear o direito à diversidade linguística é, pois, amputar do sujeito parte fundamental de sua identidade.
Por outro lado, é direito de todo cidadão ter acesso a outras variantes, além da sua própria. É direito, portanto do menino que adentra a escola, conhecer outros falares, dominar outras escritas, expandir, em outras palavras, seu universo linguístico. Dentre todo este novo conhecimento, é direito dele conhecer, também, a chamada norma culta padrão – principalmente pelo fato de que, para o bem ou para o mal, é ela que ainda garante a todos os mesmos direitos, é ela que assegura, ainda, a chance de alguma ascensão social.
À escola cabe a difícil tarefa de introduzir o aluno a um universo linguístico múltiplo e diversificado, respeitando suas idiossincrasias e, ao mesmo tempo, indicando-lhe o modo dito ‘correto’ de se expressar. Este processo, entretanto, não deve se dar de modo acrítico e apolítico, muito pelo contrário: o professor deve estar consciente de que está ensinando ao dominado a língua do dominante, exatamente, para que ele possa deixar de ser dominado.
Língua não é algo neutro ou inocente, ela existe, também, para disseminar e impor ideologias. Foi assim com a dominação católica durante toda a Idade Média, por exemplo. Foi assim durante o processo de colonização que sofremos e é assim, hoje, quando somos bombardeados por uma mídia corrompida, cujo único interesse é garantir lucros a quem a patrocina. Nesse sentido, cada cidadão é um consumidor em potencial e consome mais um povo que fala a mesma ‘língua’, por isso a cruel tentativa de homogeneização de nossos falares empreendida pelos meios de comunicação de massa. A língua é tão avessa à neutralidade que compõe, inclusive, a autoestima dos sujeitos: ao acreditar que a língua que fala é errada, o sujeito excluído está aceitando a sua exclusão como algo que ele merece.
Não é possível, diante de tudo aqui exposto, pensar que ensinar língua não é um ato político, um ato libertador, um ato de distribuição de ‘renda’. Não falo de uma renda monetária, mas de uma renda cultural – certamente ainda mais importante que a outra.