TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

terça-feira, 13 de maio de 2014

DISCUTINDO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL - SAUSSURE




                O Curso de Linguística Geral, de Ferdinand Saussure, está, certamente, entre os livros mais importantes da Linguística de todos os tempos e, também, entre os mais estudados e comentados por quem vai se aprofundar na ciência da linguagem. Não há quem passe por um curso de Letras sem ao menos ouvir falar de Saussure. Para alguns, o suíço está ultrapassado, para outros, ele ainda é fonte de grandes reflexões. Penso que, como qualquer grande obra, o Curso de Linguística Geral é complexo e multifacetado, isto é, não se pode analisá-lo como um bloco homogêneo com o qual se concorda ou não. Primeiramente, por se tratar de uma compilação das aulas do linguista genebrino feita por alguns de seus discípulos, além disso, por ser um marco conceitual. Como diria Bakhtin, é um discurso fundador, sendo, exatamente por isso, controverso, polêmico e complexo. É neste sentido que pretendo tecer alguns breves comentários sobre a obra: pensando em seu ineditismo, sua complexidade e na sua contemporaneidade.
                Antes de Saussure, não havia o estudo da língua e da linguagem como o entendemos hoje. Havia, essencialmente, estudos de gramática histórica e gramática comparada. A partir de Saussure, nasce uma nova ciência, com objeto e método próprios: a Linguística.
                O primeiro desafio de uma nova ciência é definir seu objeto e Saussure afirma que a Linguística não poderá se comparar à Química ou à Matemática, mas, sim à História. Com isto, ele nos liberta de uma prisão epistemológica; não ter tão definido assim qual o objeto da Linguística longe de ser um problema é um ponto positivo. Penso, aliás, que foi exatamente esta aparente indefinição que permitiu que a Linguística, no decorrer do século XX se subdividisse em tantas outras ciências (Sociolinguística, Psicolinguística, Análise do Discurso, Linguística Textual, Análise da Conversação etc) que, ao invés de fragmentarem-se mutuamente, pelo contrário, somam-se na tentativa de entender a língua e a linguagem. Prova cabal de que nosso objeto não é redutível ou calculável facilmente. Trata-se, antes, da complexidade do elemento que permite a existência de todos os outros, do próprio pensamento, como diz Saussure. É a língua que nos permite fazer ciência em todas as áreas e é a língua que nos permite metaforizar nossos próprios sentimentos; é a língua que, nos tribunais, condena ou absolve; é ela ainda o objeto de trabalho do psicanalista. Enfim, o linguista tem diante de si um objeto multifuncional e multifuncional; irredutível, pois, ao simplismo cartesiano ou ao determinismo positivista.
                Vencido tal desafio, Saussure precisou, de certa forma, negar o que era feito na área de estudos da linguagem. Para isto, ele propõe o estudo sincrônico da língua, contra o olhar diacrônico, vigente até então. Passa-se, assim, a observar a língua como ela é e não como ela vem sendo. Obviamente, o que Saussure propôs não foi o abandono da história das transformações da língua. Entendo que a proposta sassureana é colocar a diacronia a serviço do estudo sincrônico da língua, isto é, a partir da análise do que a língua é hoje, se necessário for ao entendimento do fenômeno, buscar subsídios na história, na etimologia, na evolução dos usos linguísticos. Falo de uma diacronia que completa o sentido atual da língua e não em um estudo diacrônico per se. Estava, desse modo, definido o foco da nova ciência: a língua hoje.
                A este respeito, Saussure comete o que para alguns é seu maior equívoco: centrar a ciência na língua e não na fala.
                O linguista precisou fazer uma difícil escolha epistemológica. Na estruturação da nova ciência, Saussure escolheu o sistema, em vez do uso. A língua foi privilegiada e não seu funcionamento real, como elemento de interação social. Tal falha, se é que podemos falar assim, é, entretanto, justificável, pelo seu momento histórico, pelo que se conhecia de língua até então, pela forte influência das pesquisas em ciências naturais, nas quais o idiossincrático não pode ser levado em consideração e pela necessidade de se escolher, metodologicamente, um elemento de análise mais concreto. Por isso tudo a língua se fez predominante.
                Entretanto, em alguns momentos, Saussure antecipa estudos enunciativos. Ao falar de valores, por exemplo, ele está falando do processo de enunciação, pois é na enunciação que a palavra ou a sentença ganha valor além do simples significado denotativo. Ele dá o exemplo do uso da palavra ‘senhores’ durante uma palestra ou reunião. Diz Saussure que a palavra é a mesma, porém a intenção, a entonação, ou seja, os valores a ela atribuídos são variados. Ora, o que é isso senão o enunciado em seu caráter irrepetível? Cada vez que eu enunciar ‘senhores’ será um novo enunciado, ainda que tenhamos, para a gramática, a mesma palavra ou frase. Obviamente que a tal conclusão só posso chegar hoje, após os estudos na área da Enunciação. Saussure não tinha como fazer tal afirmação, mas ele já percebia um caráter volátil na língua, algo que ultrapassa os limites do sistema e da estrutura, algo que eleva à língua ao status de elemento crucial de interação social.
                Em sua ânsia de definir um objeto para a Linguística e, ao mesmo tempo negar o que se vinha fazendo até então, Saussure estabelece o conceito de ‘signo linguístico’. A partir deste conceito, expandiram-se e ainda se expandem as diversas interfaces dos estudos da linguagem. O signo está no centro das construções enunciativas, está no centro das interações linguísticas e está no centro da teoria saussureana.
                Trata-se de algo simples para nós, hoje, mas pensando no momento em que foi, pela primeira vez definido, certamente o conceito de signo provocou grandes mudanças no pensamento acerca da língua. O signo é a junção simultânea de um significante e um significado, isto implica dizer que uma sequência sonora – uma imagem acústica (significante) só passa a ser signo se os interlocutores estabelecem para ela um sentido (significado). É o signo, também, que nos permite falar de coisas que não estão ao nosso redor, que sequer existem, pois o significado do signo é diferente do referente (a coisa real que existe no mundo). O significado é a imagem que carregamos em nossa mente do objeto, por isso Saussure insiste tanto no caráter psicológico da língua. Para ele, a língua é a representação mental do universo, melhor, ela é a soma das representações todas de todos os falantes. Ela não está inteira contida em um falante, mas na soma de todos. Diante disso, percebemos a existência de três entidades distintas, embora indissociáveis na formação do signo linguístico: o significante, o significado e o referente.
                Ainda sobre o signo, algo ainda mais simples foi evidenciado por Saussure. Falo da questão da linearidade do signo. Na verdade, linearidade do significante, isto é, esta tal imagem acústica se apresenta ocupando determinado espaço físico e cada um de seus elementos constituintes – fonemas ou letras – segue determinada ordem linear. Diferentemente do significado, que é visualizado psiquicamente em sua totalidade. Por exemplo, ao dizer ou escrever a palavra ‘mesa’, temos necessariamente uma sequência de letras e fonemas: ‘M – E – S – A’, entretanto, ao ser pronunciada, imediatamente o ouvinte resgata em sua mente, o objeto ‘mesa’ em sua totalidade.
                Finalmente, Saussure nos fala das escolhas que fazemos ao nos comunicarmos, seja dentro da palavra seja em sua relação com outras palavras. Ele nos propõe a noção de sintagma e paradigma. Para o linguista, paradigma é o conjunto das escolhas possíveis para preencher determinada função ou ocupar determinada posição na linearidade do significante (ter determinado valor). Sintagma, por sua vez, é o conjunto das escolhas efetivamente feitas no uso da língua. Assim, para a palavra ‘mesa’, temos o sintagma ‘m – e – s –a’, mas havia dezenas de possibilidades combinatórias, ou seja, paradigmas: musa / pesa / lesa / lisa / mera / muro etc. As variações paradigmáticas são infinitas. Esta capacidade gerativa será explorada posteriormente por outros linguistas, dentre eles, Chomsky.
                No nível da sentença, temos o mesmo processo; dentro de uma infinidade paradigmática, alguns sintagmas são escolhidos e efetivamente usados. Assim, por exemplo, em: ‘o menino comprou chocolate’, a posição de sujeito ‘o menino’ poderia ser ocupada por centenas de outros elementos. Do mesmo modo, o objeto direto ‘chocolate’ poderia ser alterado. O verbo poderia ser outro e assim por diante, gerando uma infinidade de combinações frasais.
                Por tudo isso é que estudar Saussure, ainda hoje, é essencial a quem pretende se aprofundar nos estudos da língua e da linguagem, ainda que seja para discordar dele. Não há como negar as profundas transformações que Saussure provocou no modo de olhar para a língua e seu funcionamento. Obviamente, muito se avançou desde 1913, quando foi lançado o Curso de Linguística Geral, ainda bem, mas muito do que se fez, senão tudo, teve influência saussureana.





                

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