Autores e obras: identidade e
memória
A literatura não é um bloco
cronologicamente organizado como querem fazer pensar vários livros didáticos e
alguns de História da Literatura. Os autores e os estilos predominantes não se
sucederam uns aos outros de forma pensada e intencional. A verdade é que foi
sempre uma profunda inquietação que moveu e move o homem em direção às
transformações que ocorreram e ocorrem não só em Literatura, mas na arte de
forma geral e, mais amplamente, em todo o saber humano.
A História, quando estudada por uma
perspectiva mais tradicional, tende a criar blocos temporais e espaciais que
nos dão a impressão de que a vida só é desorganizada e caótica hoje e que no
passado tudo aconteceu sempre harmoniosamente. Assim, parece-nos que aos
primeiros contatos dos europeus com os povos que aqui habitavam, sucedeu
naturalmente um interesse em explorar nossas riquezas e após esse primeiro interesse,
também naturalmente, instalaram-se aqui pequenas vilas e essas vilas cresceram
e se tornaram povoados maiores. Esses povoados reunidos decidiram que era hora
de se desligarem da matriz e houve, então, nossa independência.
A impressão que se tem é que antes de
1822 jamais se havia pensado em independência, desconectando desse processo as
iniciativas e revoltas todas que aconteceram antes, como a Inconfidência
Mineira. Citar que houve um Tiradentes não basta, é necessário entender que
esses processos todos estão intimamente ligados e se influenciando. Não haveria
um pensamento abolicionista, por exemplo, se não tivesse ocorrido a Revolução
Francesa e esta, por sua vez, também é fruto de um pensamento que vinha
amadurecendo há muito tempo na Europa. Enfim, todo acontecimento histórico está
sempre relacionado a outro e pode ser muito mais amplamente entendido se assim
for estudado desde o princípio.
Com a Literatura, em geral, acontece
o mesmo. Estudam-se as chamadas escolas literárias separadamente e espera-se
que depois o aluno faça as conexões necessárias. No máximo, o que se discute é
a influência de uma escola na escola imediatamente posterior, assim, pensa-se
nas influências do Arcadismo sobre o Romantismo, por exemplo, e deste sobre o
Realismo, sempre seguindo essa abstrata linha temporal que alguém convencionou.
Por que não estudarmos a Carta de Caminha em um contraste com o Brasil que se
criou depois da semana de 22, ou que se almejou criar? Por que não encontrarmos
elos entre Gregório de Matos e Oswald de Andrade ou entre eles e Chico Buarque,
uma vez que esses e outros usam a literatura como arma de crítica
sócio-política?
Antônio Cândido (2007) propõe uma
visão dialética dos períodos literários que não se anulam, mas se complementam.
Temos, entretanto, de pensar que esses períodos além de se complementarem,
também se mesclam. Isto é, há elementos fundadores nas literaturas nacionais
que vão ser recorrentes em diferentes estilos, autores e gêneros. Esses
elementos vão constituir o que seria a memória literária de um país e vão ser
constituintes da própria personalidade dessa nação.
A busca por uma independência
cultural e a descoberta de um fazer literário próprio e legítimo, por exemplo,
norteou as literaturas da América. Em relação aos Estados Unidos, por exemplo,
segundo High (1997), a independência que ocorreu efetivamente política e militarmente,
não aconteceu culturalmente, pelo menos não de imediato. Segundo o teórico,
demorou mais de um século para que a literatura norte-americana desenvolvesse
uma tradição independente da européia. Nem mesmo havia leitores para uma
literatura de cunho nacional, porque, assim como aqui no Brasil, só era
valorado o que vinha da metrópole.
A construção de uma paisagem
nacional, de um pensamento coletivo que de certa forma traduza uma nação ao seu
povo sintetiza muito do pensamento que tem norteado a criação literária não só
no Brasil como em todo o mundo. Muitas vezes, essa construção identitária se dá
exatamente pela negação dessa identidade, como é possível ver nas correntes que
rompem com modelos e padrões.
Nesse sentido, escritores e poetas
desenvolvem suas obras seja no sentido de construção de uma paisagem, como foi
o caso de Gonçalves Dias ou José de Alencar ou de desconstrução dessa paisagem
como temos em Mario de Andrade ou mais contemporaneamente em Chico Buarque com Leite derramado. Esse processo é chamado
de sacralização e dessacralização por Bernard (2003), isto é, a literatura se
estabelece ora promovendo uma paisagem ora a desconstruindo, isto é, tanto a
exaltação de um ideal nacionalista como sua negação servem ao propósito de
elaboração de uma identidade nacional comum.
Afrânio Coutinho (2008) fala de pelo
menos três maneiras de se estudar Literatura. Primeiramente, fala da
perspectiva história que parece ter predominado nos cursos de Letras, assim
como no ensino médio e questiona esse formato, exatamente pelo que já foi aqui
mencionado. Em seguida, o autor apresenta uma visão genológica dos estudos
literários, isto é, voltado exclusivamente para o fenômeno literário em si. Finalmente, ele
nos apresenta uma terceira possibilidade, que, aparentemente parece corroborar
a discussão que ora se apresenta: uma visão baseada em gênero e estilo.
Estudaríamos, assim, determinado gênero, o romance, digamos, em diferentes
momentos históricos, dentro do estilo predominante em cada momento. Digo
aparentemente porque o que se discute aqui não é uma evolução do gênero nos
diferentes estilos, simplesmente, mas, numa visão mais bakhtiniana, seria um
diálogo dos diferentes gêneros nos diferentes estilos. Assim, extrapolamos a
noção de sequência histórica para buscarmos afinidades entre os vários momentos
que formaram e formam a identidade literária do nosso povo. Bakhtin propõe, com
sua idéia de dialogismo, que os textos todos estão em constante e profundo
diálogo, isto é, nenhum texto está isolado da influência de outros, bem como de
influenciar outros textos futuros.
Segundo essa perspectiva, poderíamos
desenvolver as aproximações necessárias a um entendimento mais crítico e amplo
das literaturas nacionais. Uma literatura nacional deixaria, assim, de ser um
bloco organizado cronológica e/ou espacialmente para ser um complexo processo
de construção e desconstrução contínuas de uma paisagem histórica, social e
política a partir de um mito fundador que é recorrente em diferentes gêneros e
em diferentes estilos. Exemplo disso é a aproximação de Gregório de Matos e
Chico Buarque anteriormente proposta, seria século XVI e século XXI dialogando,
seria poesia e prosa se encontrando.
A proposta deste trabalho é, dessa
forma, estabelecer uma investigação literária que prime pela aproximação e não
pela segregação, como tem acontecido tradicionalmente. Não é necessariamente um
ponto de vista novo, mas inovador. O objetivo é provocar uma reflexão mais
abrangente do fenômeno literário e preparar o aluno de Letras para entender,
posteriormente, as características estruturais dos diferentes estilos e
períodos literários sem jamais perder de vista o todo formador de uma
identidade literária nacional.
BAKHTIN,
M. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do Francês por Maria E.
Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2ª. Ed., 1997.
BERNARD,
Z. Literatura e identidade nacional, 2ª. Ed. Porto Alegre – RS: Editora da
UFRGS, 2003.
CANDIDO,
A. Iniciação à literatura brasileira, 5ª. Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul,
2007
COUTINHO,
A. Notas de teoria literária. Petrópolis – RJ: Vozes, 2008
HIGH, P. An
outline of American Literature, 15ª. Ed. England: Longman, 1997
Pensamento Bakthiniano...um texto conversando com outro texto. A dialógica perfeita.
ResponderExcluirAtrás das palavras sempre existem outros significados, outros conceitos.
O que está implícito deve ser procurado para que se faça um diálogo textual quase que perfeito.
Muito boa colocação.
Abçs
Ana Paula L.