TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Autores e obras: identidade e memória

    



A literatura não é um bloco cronologicamente organizado como querem fazer pensar vários livros didáticos e alguns de História da Literatura. Os autores e os estilos predominantes não se sucederam uns aos outros de forma pensada e intencional. A verdade é que foi sempre uma profunda inquietação que moveu e move o homem em direção às transformações que ocorreram e ocorrem não só em Literatura, mas na arte de forma geral e, mais amplamente, em todo o saber humano.
            A História, quando estudada por uma perspectiva mais tradicional, tende a criar blocos temporais e espaciais que nos dão a impressão de que a vida só é desorganizada e caótica hoje e que no passado tudo aconteceu sempre harmoniosamente. Assim, parece-nos que aos primeiros contatos dos europeus com os povos que aqui habitavam, sucedeu naturalmente um interesse em explorar nossas riquezas e após esse primeiro interesse, também naturalmente, instalaram-se aqui pequenas vilas e essas vilas cresceram e se tornaram povoados maiores. Esses povoados reunidos decidiram que era hora de se desligarem da matriz e houve, então, nossa independência.
A impressão que se tem é que antes de 1822 jamais se havia pensado em independência, desconectando desse processo as iniciativas e revoltas todas que aconteceram antes, como a Inconfidência Mineira. Citar que houve tal revolta não basta, é necessário entender que esses processos todos estão intimamente ligados e se influenciando. Não haveria um pensamento abolicionista, por exemplo, se não tivesse ocorrido a Revolução Francesa e esta, por sua vez, também é fruto de um pensamento que vinha amadurecendo havia muito tempo na Europa. Enfim, todo acontecimento histórico está sempre relacionado a outro e pode ser muito mais amplamente entendido se assim for estudado desde o princípio.
            Com a Literatura, em geral, acontece o mesmo. Estudam-se as chamadas escolas literárias separadamente e espera-se que depois o aluno faça as conexões necessárias. No máximo, o que se discute é a influência de uma escola na escola imediatamente posterior, assim, pensa-se nas influências do Arcadismo sobre o Romantismo, por exemplo, e deste sobre o Realismo, sempre seguindo essa abstrata linha temporal que alguém convencionou. Por que não estudarmos a Carta de Caminha em um contraste com o Brasil que se criou depois da semana de 22, ou que se almejou criar? Por que não encontrarmos elos entre Gregório de Matos e Oswald de Andrade ou entre eles e Chico Buarque, uma vez que esses e outros usam a literatura como arma de crítica social e política?
            Antônio Cândido (2007) propõe uma visão dialética dos períodos literários que não se anulam, mas se complementam. Temos, entretanto, de pensar que esses períodos além de se complementarem, também se mesclam. Isto é, há elementos fundadores nas literaturas nacionais que vão ser recorrentes em diferentes estilos, autores e gêneros. Esses elementos vão constituir o que seria a memória literária de um país e vão ser constituintes da própria personalidade dessa nação.
            A busca por uma independência cultural e a descoberta de um fazer literário próprio e legítimo, por exemplo, norteou as literaturas da América. Em relação aos Estados Unidos, por exemplo, segundo High (1997), a independência que ocorreu efetivamente política e militarmente, não aconteceu culturalmente, pelo menos não de imediato. Segundo o teórico, demorou mais de um século para que a literatura norte-americana desenvolvesse uma tradição independente da europeia. Nem mesmo havia leitores para uma literatura de cunho nacional, porque, assim como aqui no Brasil, só era valorado o que vinha da metrópole.
            A construção de uma paisagem nacional, de um pensamento coletivo que de certa forma traduza uma nação ao seu povo sintetiza muito do pensamento que tem norteado a criação literária não só no Brasil como em todo o mundo. Muitas vezes, essa construção identitária se dá exatamente pela negação dessa identidade, como é possível ver nas correntes que rompem com modelos e padrões.
Nesse sentido, escritores e poetas desenvolvem suas obras seja no sentido de construção de uma paisagem, como foi o caso de Gonçalves Dias ou José de Alencar ou de desconstrução dessa paisagem como temos em Mario de Andrade ou mais contemporaneamente em Chico Buarque com Leite derramado. Esse processo é chamado de sacralização e dessacralização por Bernard (2003), isto é, a literatura se estabelece ora promovendo uma paisagem ora a desconstruindo, isto é, tanto a exaltação de um ideal nacionalista como sua negação servem ao propósito de elaboração de uma identidade nacional comum.
            Afrânio Coutinho (2008) fala de pelo menos três maneiras de se estudar Literatura. Primeiramente, fala da perspectiva história que parece ter predominado nos cursos de Letras, assim como no ensino médio e questiona esse formato, exatamente pelo que já foi aqui mencionado. Em seguida, o autor apresenta uma visão genológica dos estudos literários, isto é, voltado exclusivamente para o fenômeno literário em si. Finalmente, ele nos apresenta uma terceira possibilidade, que, aparentemente parece corroborar a discussão que ora se apresenta: uma visão baseada em gênero e estilo. Estudaríamos, assim, determinado gênero, o romance, digamos, em diferentes momentos históricos, dentro do estilo predominante em cada momento. Digo aparentemente porque o que se discute aqui não é uma evolução do gênero nos diferentes estilos, simplesmente, mas, numa visão mais bakhtiniana, seria um diálogo dos diferentes gêneros nos diferentes estilos. Assim, extrapolamos a noção de sequência histórica para buscarmos afinidades entre os vários momentos que formaram e formam a identidade literária do nosso povo. Bakhtin propõe, com sua idéia de dialogismo, que os textos todos estão em constante e profundo diálogo, isto é, nenhum texto está isolado da influência de outros, bem como de influenciar outros textos futuros.
            Segundo essa perspectiva, poderíamos desenvolver as aproximações necessárias a um entendimento mais crítico e amplo das literaturas nacionais. Uma literatura nacional deixaria, assim, de ser um bloco organizado cronológica e/ou espacialmente para ser um complexo processo de construção e desconstrução contínuas de uma paisagem histórica, social e política a partir de um mito fundador que é recorrente em diferentes gêneros e em diferentes estilos. Exemplo disso é a aproximação de Gregório de Matos e Chico Buarque anteriormente proposta, seria século XVI e século XXI dialogando, seria poesia e prosa se encontrando.

            A proposta deste texto é, dessa forma, estabelecer uma reflexão que permita a aproximação e não a segregação, como tem acontecido tradicionalmente entre períodos, estilos, gêneros literários; bem como entre escritores, poetas e críticos literários. Não é necessariamente um ponto de vista novo, mas inovador. O objetivo é provocar uma reflexão mais abrangente do fenômeno literário e instrumentalizar o leitor para entender, posteriormente, as características estruturais das diferentes obras literárias sem jamais perder de vista o todo formador de uma identidade literária nacional.



BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do Francês por Maria E. Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2ª. Ed., 1997.
BERNARD, Z. Literatura e identidade nacional, 2ª. Ed. Porto Alegre – RS: Editora da UFRGS, 2003.
CANDIDO, A. Iniciação à literatura brasileira, 5ª. Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007
COUTINHO, A. Notas de teoria literária. Petrópolis – RJ: Vozes, 2008
HIGH, P. An outline of American Literature, 15ª. Ed. England: Longman, 1997







Nenhum comentário:

Postar um comentário