TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

domingo, 7 de julho de 2013

REPRESENTAÇÃO SOCIAL – PAPÉIS SOCIAIS






                Na busca por uma metáfora que bem traduza as complexas relações sociais estabelecidas pelo homem do seu nascimento ao seu atestado de óbito nada parece mais propício que pensar num palco com sua grande cortina vermelha, sua iluminação, seu cenário, seus atores em cena, um diretor, uma campainha avisando o início da ação, um roteiro a ser seguido com papéis sendo assumidos e interpretados e, o mais importante, uma plateia: o outro. O outro que nos constitui, que nos fornece tudo aquilo que não somos, para, a partir disso, tornarmo-nos, enfim, o que somos. Esta ideia, que Bakhtin chama de alteridade é que nos fornece o princípio formador de nossa identidade. Em outras palavras, sabemos quem somos a partir de quem não somos – não somos o outro e é nessa negação do outro que nos  formamos como sujeitos.
                E o palco satisfaz plenamente o jogo social que se estabelece na formação da identidade do sujeito, uma vez que este jogo é, na verdade, uma grande encenação. O homem, em seu processo de autoconstrução vai se moldando ao que a sociedade espera dele. Sociedade é este conceito bastante abstrato e complexo que diz respeito a algo que preexiste a nós e continuará aqui quando nossa lembrança já estiver esquecida. Ela existe, simplesmente, e dita regras, estabelece costumes, discrimina maneiras de se comportar, hierarquiza pessoas e carreiras, define padrões e exclui aqueles que, de alguma forma, não se encaixam nesses aspectos. Ser um excluído social, um pária é, talvez, o maior medo de todos nós. E para fugir disso o homem vai se vestindo deste outro homem, deste personagem social: o homem do palco. Sob as luzes da ribalta, o homem, então, exerce o seu papel, melhor, os seus papéis, porque são muitos os papéis que este homem social deve ter e em cada um deles, espera-se um desempenho exemplar. E vai o homem dividindo-se e multiplicando-se em tantos quantos forem seus papéis: pai, filho, irmão, vizinho, cunhado, empregado, chefe, freguês, religioso, assinante, telespectador, estudante, amigo, colega de trabalho, rival, sócio, amante.
                Para ser bem avaliado socialmente, alguns papéis precisam ser vividos de forma especial, digamos. O homem social não pode ser tudo o que quer quando, onde, como e com quem quer. Não. O homem social segue as regras do jogo. Segue as ordens de um diretor que ele nem conhece. Segue o roteiro escrito por alguém que ele também não conhece. E neste roteiro, alguns papéis são mais bem vistos que outros. Assim, é melhor que ele seja bem sucedido profissionalmente, é melhor que ele acorde cedo e seja trabalhador, é melhor que ele se mostre intelectual, que ele se apresente como alguém inteligente, de preferência branco e heterossexual. De preferência religioso, magro, alto, destro, bonito, jovem, sem deficiência física ou intelectual. Ainda é de bom tom que ele seja educado, que não use gírias ao falar, que não fale palavrões, que se vista de forma discreta, evitando excesso de cores, piercings, tatuagens e outras excentricidades. Nosso personagem precisa, enfim, estar sempre pronto a encaixar-se em qualquer papel, para isso tem de ser o mais neutro possível, o mais sem personalidade possível, para ser mais exato. Aliás, o ideal é que ele seja um personagem sem personalidade alguma.
                Saltando de uma metáfora a outra, o que temos são pessoas inéditas tentando se encaixar em casas pré-fabricadas e, em nome disso, vão negando a si mesmas. De tempos em tempos, no entanto, encontramos alguns que não se conformam (nem se enformam) e são chamados de loucos ou de inválidos. Depois, os anos, muitas vezes, vão mostrar que esses loucos e inválidos só estavam, na verdade, é criando suas próprias casas, em vez de aceitarem, passivamente, as que lhe entregaram ao nascerem para morar.
Loucos são os outros, os que querem ser normais.
               
E para finalizar, atrevo-me a uma rápida loucura: trazer dois textos menos formais e mais literários – ainda que bem dentro do assunto.

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Quem se constrói apenas com os tijolos que lhe deram está condenado a viver, para sempre, em cômodos pequenos. Mas Quem inventa os próprios tijolos faz de si um castelo. (Leandro Luz – “Por tudo aquilo que o tempo não cura” – no prelo)


PELO BEM DA FAMÍLIA BRASILEIRA
Está lá dentro há mais de dez horas. O outro já faz três semanas. E o primeiro, há dois meses.
Até agora nenhum avanço.
Já tentaram choque? Fogo nos pés? 
já tentaram quebrar as pernas? Furar os olhos? 
Sim,
Tudo
E?
Nada.
Nada?
Sim, nada.
Os três insistem em continuar sendo canhotos. 
Então, cortem o braço e a perna esquerdos.
Senhor, já cortamos o braço e a perna esquerdos do primeiro.
E então?
Ele deixou de ser canhoto, é verdade...
Ótimo.

Sim. Mas não se tornou destro.
Agora ele não é nada.
Que seja,
Melhor assim.
Antes termos um nada entre nós do que um canhoto.








quarta-feira, 3 de julho de 2013

LEITURA: DO TEXTO AO HIPERTEXTO






A leitura acompanha o homem desde que o homem habita este planeta. Numa acepção ampla, ler significa apreender elementos ou estímulos externos e processá-los de modo a construir, a partir deles, sentidos. Pensando assim, o homem primitivo, para sobreviver, precisou ler a natureza hostil em que habitava. O homem antigo precisou ler o inimigo para sobreviver às guerras e manter seus territórios. O homem medieval precisou ler a terra para dela tirar seu sustento e, por outro lado, acabou sendo impedido de ler (e agora falo de um sentido mais restrito) para fins de adquirir conhecimento se quisesse continuar vivo. O homem moderno precisou ler o próprio homem para se fazer moderno. E o homem contemporâneo precisa ler o virtual, o espaço, o hiperespaço para ir além do próprio homem.
            O fato é que nunca na História da Humanidade a leitura e a escrita estiveram tão ao alcance de todos como hoje. Nunca antes o homem pôde dispor dessas duas armas de guerra, dessas duas ferramentas de trabalho, dessas duas tecnologias de desenvolvimento como faz de forma até banal atualmente. Esse fenômeno tem a sua própria historicidade em tem seus dois lados – positivo e negativo – como qualquer outro fenômeno humano.
            O lado positivo está no livre acesso de todos ao mundo das palavras escritas, antes um privilégio de poucos. Sabemos que a escrita e a leitura sempre significaram uma importante fronteira entre quem detinha ou não o poder. Por outro lado, toda essa democratização levou a uma banalização da informação e, consequentemente, do conhecimento. Confundem-se, na verdade, esses dois conceitos. Informação é o dado por si, ao passo que conhecimento é o dado transformado pela ação do homem. Para haver conhecimento, é necessário que o homem o construa; que o homem, em outras palavras, execute uma ação, desenvolva um processo que parte, sem dúvida da informação, mas que a extrapola. O mundo atual parece parar na informação, parece satisfazer-se com ela, uma vez que se tornou tão fácil alcança-la.
            Ao falar de construção de conhecimento como processo ativo que decorre da intervenção do homem na informação disponível, estou, na verdade, trazendo à tona os conceitos de inter e hiperdiscurso. O primeiro diz respeito, exatamente, a esta teia de sentidos que se vai elaborando à medida que se vai costurando textos diversos na tentativa de se construir conhecimento. Aproximo-me da noção de dialogismo proposta por Bakhtin. O segundo conceito, o de hiperdiscurso, diz respeito ao movimento do interdiscurso no hiperespaço. É o hiperdiscurso que garante que o hipertexto mantenha os fatores de textualidade propostos por Beaugrande e Dressler, a saber: coesão, coerência, informatividade, aceitabilidade, intencionalidade, situacionalidade, intertextualidade. Por algum tempo defendeu-se que o texto para ser texto precisava possuir, necessariamente, esses fatores; hoje, entretanto, já não se pensa assim, mas ainda se admite a importância desses aspectos no estudo da textualidade. Sendo textualidade a unidade semântica, estrutural (linguística), discursiva e pragmática de um texto, ela não deixa, de maneira alguma, de existir no hiperespaço. Em outras palavras, o hipertexto também é dotado de textualidade ou se preferirmos, de hipertextualidade.
O hiperdiscurso pode ser entendido como o caminho digital ou virtual que o leitor vai construindo em sua leitura no hiperespaço. Seria o mapa da sua navegação, mas não um mapa previamente desenhado, que ele deve seguir; e sim o mapa que ele mesmo vai desenhando conforme vai navegando e descobrindo novos mares.
            Mesmo diante das infinitas possibilidades que o hiperespaço abre, o leitor faz escolhas que seguem uma orientação não aleatória, mas guiada por uma intenção e uma situação que são inter e hiperdiscursivas; inter, pois resultam de múltiplas combinações discursivas dialogando entre si e hiper porque tais combinações e diálogos se dão no hiperespaço. Ainda pensando nos fatores de textualidade, é possível perceber que o leitor, para de um link abrir um novo (hiper)texto , precisa estar dotado de determinada carga informativa. O que quero dizer é que para fazer os saltos de um texto a outro – movimento típico no hiperespaço – o leitor precisa ter certo grau de informatividade, ou seja, ele só clica no link se encontrou a informação que queria ou a dúvida, o questionamento que lhe instigou. De qualquer forma, o aspecto informatividade (seja por sua satisfação ou por sua falta) está relacionado com o ato de clicar no link que levará o leitor a um novo (hiper)texto. Este novo (hiper)texto pode se mostrar, por sua vez, aceitável ou não aos interesses do leitor, pois embora o link seja o mesmo, o inter/hiperdiscurso construído para cada navegação é único e a cada nova leitura é um novo significado sendo criado para o (hiper)texto que se abre e nem sempre ele satisfará o leitor. Aceitável ou não neste novo cenário (hiperespaço) tem a ver com o hiperdiscurso em construção e não com regras pré-estabelecidas (gramaticais, por exemplo). Finalmente, o fator intertextualidade dispensa grandes elucubrações, pois a noção de intertexto está no cerne da própria existência do hipertexto e do hiperdiscurso. Não haveria hiperdiscurso se não houvesse intertextualidade, ou seja, se os textos não tivessem a capacidade inerente de dialogarem entre si não seria possível pensar em um “hiperdiálogo” universal entre texto ad infinitum que é o que acontece no hiperespaço.
            Nem tudo que parece novo é, de fato, tão novo assim.
O homem muda a tecnologia que muda o homem que se adapta a ela que o muda novamente e assim por diante. O homem vai transformando seu meio ao mesmo tempo que vai sendo por ele transformado e tem sido assim desde sempre. Mas alguns princípios permanecem. Dizer que o hiperdiscurso é que constrói as pontes que ligam os sentidos do hipertexto é para os dias de hoje o que foi há algum tempo dizer que o discurso é que construía as pontes dos sentidos do texto. Ampliou-se o alcance da mão do homem, do seu olhar e do seu pensamento. Ampliou-se muito a sua capacidade de entendimento do universo macro e microscópico. Mas o hipertexto não é, absolutamente, uma invenção nova. A intertextualidade existia antes da internet. O que a internet fez foi facilitar o diálogo entre os textos, foi acelerar as conexões, foi dinamizar os contatos. Não inventou, apenas aperfeiçoou. O hiperespaço estava lá o tempo todo só esperando para ser explorado, do mesmo modo que a América sempre esteve aqui, o tempo todo, só esperando ser explorada e não inventada. Isso não diminui o mérito do descobridor, só coloca as coisas em seu devido lugar. Não podemos, em nome de um tecnologismo quase patológico, esquecer todo o esforço que antecedeu o que vivemos hoje. Milhares de pesquisadores escreveram suas teses em máquinas de escrever, amassando centenas e centenas de folhas de sulfite para que eu, hoje, possa, simplesmente, apertar uma tecla e corrigir um erro na tela do computador – isso não pode ser desprezado. Esses mesmos pesquisadores iam às bibliotecas e faziam saltos de um a outro livro, liam notas de rodapé, analisavam sumários, faziam, em outras palavras uso do hiperdiscurso, do mesmo jeito que eu hoje faço; obviamente com menos recurso, com menos velocidade, limitados ao espaço físico. Hoje eu executo o mesmo processo, mas com o universo inteiro ao meu dispor, com a liberdade do infinito, com o hiperespaço todo para explorar e tudo isso a um click de distância.
Assustador e maravilhoso.