TEXTO, TEXTUALIDADE E ENSINO

Na miscelânea das teorias, na miríade dos nomes e no caleidoscópio das ideias sobre ensino-aprendizagem de língua e literatura, há diversos caminhos possíveis. Este blog propõe esta discussão vista por diversos ângulos.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA HISTÓRIA DA LÍNGUA - HERMANN PAUL


Resenha do capítulo XXI - Língua falada e escrita


PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA HISTÓRIA DA LÍNGUA
HERMANN PAUL

Cap. XXI – LÍNGUA FALADA E ESCRITA



         No capítulo XXI, Hermann Paul discute a relação entre língua falada e língua escrita. Meu objeto de estudo no doutorado é a língua escrita, especificamente a leitura do texto escrito, por isso a escolha de falar sobre este capítulo.
         O autor abre o capítulo atribuindo à escrita o papel de registrar as mudanças históricas da língua. Ele traça, ainda no primeiro parágrafo do capítulo, duas importantes considerações sobre a escrita: primeiro que ela é uma conversão (não se escreve a língua propriamente dita, mas uma conversão desta para a escrita); segundo que esta conversão é incompleta.
         Ao falar das vantagens da escrita, Paul reafirma seu caráter duradouro em contraste com a efemeridade da fala, além de seu caráter expansivo, isto é, a escrita expande a área de comunicação para muito além da interação face a face.
         Era recorrente em seu tempo a preocupação em estabelecer os limites de registro entre a fala e a escrita. Paul enfatiza a incapacidade de equivalência entre os sons da língua e sua grafia. Hoje, entretanto, esta discussão soa irrelevante, posto que tal discrepância já é sabida  e aceita por todos. Já se sabe, inclusive, que não é papel da escrita tentar copiar fielmente os sons da fala, o que seria impossível e inútil.
 O autor parece sinalizar que a mesma arbitrariedade apontada por Saussure para a constituição do signo também se aplica à escrita quando ele afirma que “na fixação pela escrita da maioria das línguas, não se sentiu a necessidade de empregar um símbolo especial para a nasal gutural e palatal, mas empregou-se para elas o mesmo” (pg. 395). Observe que o autor fala em sentir ou não a necessidade de registro. Há, portanto, um caráter arbitrário e consensual na grafia das palavras e não uma tentativa de cópia da fala. Outro aspecto levantado pelo autor diz respeito ao fato de que as línguas não tiveram seus alfabetos criados para satisfazerem suas necessidades, mas tiveram, antes, alfabetos adaptados de outras línguas. Soma-se a isso o fato de que às línguas podem ser acrescidos elementos semânticos novos que requerem novos recursos fônicos e escritos para seu registro.
Paul faz uma analogia entre fala e escrita com uma obra e seu esboço. Para o autor, a escrita é o esboço que garante que a fala se mantenha ou se transforme. Concordo apenas parcialmente com esta analogia, uma vez que já sabemos que fala e escrita não têm, necessariamente, nenhuma conexão, principalmente quando alcançamos o nível textual em situações de interação real.
Outra característica da escrita evidenciada pelo autor é que ela acaba carregando menos elementos dialetais que a fala. Por este motivo, a escrita e não a fala é mais útil à compreensão nas relações em grande escala, por outro lado isso reforça sua incapacidade de influir na fala. 
Vale, ainda, corroborar a ideia proposta pelo autor de que é na escrita que mais fortemente se manifesta a influência da etimologia. Sem dúvida, percebemos que, na maioria das vezes, só somos capazes de explicar determinada grafia a partir do levantamento histórico da palavra. Um bom exemplo em português é o caso de ‘pedestre’, por que não ‘pestre’, já que ele anda a pé? Porque sabemos que, em Latim, havia a palavra ‘pede’ e daí temos a palavra ‘pedestre’ usada hoje.
O capítulo trata da relação entre fala e escrita apenas do ponto de vista do registro do som e não do uso da língua, aliás, como todo o resto do livro. Sabemos hoje que, na investigação da relação entre oralidade e escrita, devemos levar em consideração as situações de uso, bem como a interação entre os interlocutores, suas intenções, o suporte de tal comunicação, o gênero. Escrita e fala, como sugere Marcuschi, formam um continuum na comunicação humana. Não há o estabelecimento de fronteiras estanques, mas sim, de fronteiras (quando há) flexíveis e maleáveis. O advento da internet tornou esse continuum ainda mais fluídico, afinal, o MSN é produção escrita ou é uma fala que foi transcrita?
De modo geral, penso que o livro tem um valor histórico importante, mas em muitos aspectos se encontra ultrapassado. Vale, obviamente, como observação de como as ideias linguísticas evoluíram ao longo do tempo e de como nada, segundo Bakhtin (1997), nasce do vazio. O discurso é sempre dialógico em constante interação com outros discursos.



Referência

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do Francês por Maria E. Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2ª. Ed.,1997.
MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.



OBRA
PAUL, H. Princípios fundamentais da História da Língua. São Paulo: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983




terça-feira, 14 de maio de 2013

A Pequena Fábula de Franz Kafka: análise de um gênero discursivo na perspectiva bakhtiniana


A Pequena Fábula de Franz Kafka: 
análise de um gênero discursivo na perspectiva bakhtiniana



ABSTRACT: this research intends, according to Bakthinian theories of utterance, to analyze the text “Small fable” from Franz Kafka. It’s necessary, thus, a very careful observation of the genre to which the utterance belongs, besides the analyses of the constitutive elements of this utterance/genre, as well as the communicative sphere to which this genre belongs.

KEY WORDS: Dialogism; discourse; fable


0- INTRODUÇÃO
Diversos têm sido os estudos sobre a obra de Franz Kafka, e certamente sob variadas perspectivas teóricas. Entretanto, ainda que amplamente estudada, retomar a obra de Kafka como objeto de um estudo (tema) significa sempre um novo processo de enunciação, uma nova visão teórico-analítica, capaz não de extenuar por completo o objeto, mas de tematizá-lo de forma a, pelo menos relativamente, esgota-lo, pois segundo Bakhtin (1997, p. 300):

Teoricamente, o objeto é inesgotável, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função de uma abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor.

Observando a afirmação de Bakhtin e diante do objeto de estudo aqui proposto, posso afirmar que esta análise possui uma abordagem enunciativa do problema, ou seja, uma abordagem segundo a qual a análise se faz, considerando o uso da língua numa situação concreta de comunicação. A enunciação, segundo Machado (1995, p. 67), consiste na “unidade real do discurso comunicativo dotado de uma determinada forma genérica que nos é dada livremente, no uso corrente da língua materna que adquirimos antes mesmo dos estudos teóricos de gramática”.
                Ainda em relação ao tratamento do objeto aqui tematizado, devo atentar, como afirma Bakhtin, para a questão dos objetivos. Assim, este trabalho possui o objetivo de tecer uma análise do texto “Pequena Fábula” de Franz Kafka, tomando como base teórica, a noção de dialogismo, amplamente presente na teoria bakhtiniana. Stam (1992, p. 72), ao falar de dialogismo, afirma que “no sentido mais amplo, o dialogismo se refere às possibilidades abertas e infinitas geradas por todas as práticas discursivas de uma cultura, toda a matriz de enunciados comunicativos onde se situa um dado enunciado”.
                É preciso, desse modo, considerar quais são as características desse dialogismo que servirão de base de raciocínio na análise aqui proposta. Stam (1992, p 76), ao citar exemplos desse dialogismo, fornece os parâmetros adotados nessa análise, sendo eles: “discurso polifônico, polêmica interna oculta, autobiografia polêmica, confissão, discurso que olha de lado e réplica sarcástica”.
                Fica assim definido o objeto de estudo deste trabalho/enunciado. Não busco, de forma alguma, qualquer tipo de esgotamento do objeto, o que seria, como já foi citado anteriormente, inviável. Objetivo apenas realizar uma análise das características intrínsecas ao dialogismo bakhtiniano presentes no texto/enunciado de Franz Kafka.

1.       FRANZ KAFKA: UM FABULADOR MODERNO
Anders (1969, p. 16) questiona a visão onírica e exótica com que alguns críticos têm falado da obra de Kafka, segundo ele “Kafka não é esteticista, santo ou sonhador, nem forjador de mitos ou simbolista – pelo menos nada disso em primeiro plano: é um fabulador realista”.
Pensar num Kafka “fabulador realista” parece estranho: afinal, pode um fabulador ser realista? Não seria próprio da fábula o avesso da realidade? A troca de papéis? Se a fábula caracteriza-se essencialmente pelo humano e o não-humano em confronto numa realidade onde animais falam, pensam, sentem; é possível, assim, ser fabulador e ser realista?
Na verdade, segundo Anders (1969, p. 17), “o método de Kafka consiste, pois, em suspender através da troca de etiquetas, os preconceitos ligados a etiquetas, possibilitando, com isso, julgamentos não preconcebidos”. Assim, a fábula em Kafka soa como um instrumento, uma ferramenta para corromper preconceitos, para renomear coisas e situações, para provocar estranhamento. Ainda segundo Anders (1969, p. 17)

Em Kafka, o inquietante não são os objetos nem as ocorrências, mas o fato de que as criaturas reagem a eles descontraídamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais. Não é a circunstância de Gregor Samsa acordar de manhã transformado em barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente – a trivialidade do grotesco – que torna a leitura aterrorizante (...) De fato, nada é mais espantoso do que a fleuma e a inocência com que Kafka entra nas estórias mais incríveis.
       
Eis o espantoso e contraditório em Kafka, ser fabulador e ser realista ao mesmo tempo. Em “Pequena fábula” não é o fato do rato dialogar com o gato que provoca o estranhamento, mas sim, o tratamento realista, natural, quase cotidiano que o discurso possui. “O herói não pertence ao mundo. É justamente nessa ex-centricidade que consiste o realismo kafkiano” (ANDERS, 1969: 27). Todo esse tratamento do tema, em Kafka, não é, de forma alguma, despretensioso, pelo contrário, está repleto de intenções; Anders (1969, p 21) afirma que: “Se Kafka deseja afirmar que o ‘natural’ e ‘não-espantoso’ de nosso mundo é pavoroso, então ele faz uma inversão: o pavor não é espantoso”.
Este estranho método de estranhamento (com todo o direito de ser repetitivo) de Kafka se deve em parte à sua própria história, sua própria personalidade, a esse respeito Anders (1969, p 23) expõe que Kafka

Como judeu, não pertencia totalmente ao mundo cristão. Como judeu indiferente – pois foi-o a princípio, não se integrava completamente com os judeus. Por falar alemão, não se amoldava inteiramente aos tchecos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava de todo aos alemães da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário público de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado.

                Uma personalidade tão particularmente dotada de antagonismos não poderia ter produzido uma literatura menos antagônica, contraditória, polêmica.
                No prefácio da obra “Nas Galerias”, coletânea de contos e fábulas, de onde retirei “Pequena fábula”, Flávio R. Kothe ( 1989) afirma que  o que se tem de lugar-comum nesse tipo de fábula é que o mais fraco (no caso o camundongo) saia vitorioso. Kafka, ao inverter os papéis e subverter as expectativas do leitor, provoca, polemiza, cria o conflito. Na verdade, precisamos pensar o que representa social e politicamente a vitória do fraco nas fábulas. Existe uma espécie de compensação, ou de ilusão de que um dia a ordem socioeconômica irá se inverter, que os dominados finalmente tomarão o poder, essa é a ideologia existente por trás das inocentes fábulas; o que elas pregam é que não há porque se preocupar, fazer rebeliões, greves, motins; no fim, o pobre, o fraco, o submisso e dominado há de receber sua recompensa (mesmo que seja no paraíso segundo o pensamento cristão). Kafka, entretanto, por tudo que já foi dito, não poderia concordar e contribuir para a disseminação de uma ideologia irreal, por isso, rompe com o que se espera, e propõe uma ordem real das coisas, onde os dominantes exercem seu poder e os dominados são esmagados, a menos que mudem seu caminho. O estranho e irônico é que esse novo caminho é, uma vez mais, proposto pelo dominante: “Você apenas precisava alterar a direção da corrida – disse o gato, e devorou-o”.

2.       FÁBULA: UM GÊNERO SECUNDÁRIO
Adotar um caráter bakhtiniano de análise significa estender o olhar além do meramente textual, implica observar aspectos referentes ao gênero escolhido, às características desse gênero (construção composicional, conteúdo temático e estilo segundo Bakhtin) e sua operacionalização. Antes de falar do gênero fábula, entretanto, quero observar alguns elementos importantes em relação ao processo narrativo de produzir discurso. A esse respeito, Araújo afirma que

A situação de enunciação apresenta problemas peculiares, quando se trata de estudar o discurso literário. Os elementos que definem a situação de enunciação comum – um enunciador, um destinatário, um momento e um lugar particulares – revestem-se de máscaras apropriadas ao jogo de cena literária.

                O discurso literário foi o objeto central de estudo de Bakhtin, mais precisamente o gênero romance. Foi estudando o romance que Bakhtin tratou da questão dos gêneros, do enunciado concreto, do estilo, do tema, da expressividade enfim, de uma série de conceitos relacionados ao texto e ao discurso; essa discriminação aqui realizada entre texto e discurso tem base no que postula Marcuschi (2003, p. 24), segundo o autor: “Texto é uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instancia discursiva”.
                Ao tratar dos gêneros, especificamente, Bakhtin (1997) faz uma distinção entre gêneros primários (de elaboração simples, cotidiana) e gêneros secundários, que, segundo o autor, surgem numa situação de comunicação mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente na escrita.
                Os gêneros literários, dentre eles, a fábula, fazem parte dos chamados gêneros secundários que, ainda segundo Bakhtin (1997, p. 281), durante o processo de formação “absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstancias de uma comunicação verbal espontânea”. Assim, por exemplo, quando um texto narrativo (gênero secundário) faz uso de réplicas do diálogo (gênero primário), reestrutura esse gênero, inserindo-o numa nova enunciação, como forma de citação (discurso de outrem), vale lembrar o que Bakhtin fala sobre citação em Marxismo e filosofia da linguagem, segundo o autor “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (1995 p. 144).
Em “Pequena fábula” o que encontramos é exatamente a réplica de um diálogo cotidiano entre um camundongo e um gato, tratado - como próprio do estilo kafkiano - o mais naturalmente possível. Aqui, as falas dos animais, cada uma com seu tema próprio, tornam-se tema para o enunciado maior: a fábula de Kafka que, insere-se por sua vez, no diálogo humano e social, no qual encontramos outros discursos literários ou não. Assim, como diz Souza (1999, p. 113) “o discurso citado é um tema do nosso discurso. Enquanto um enunciado citado, ele apresenta o seu próprio tema, e assim integra o contexto do discurso do autor – o nosso discurso”.
                Não cabe aqui nenhuma espécie de tratamento tipológico ou estruturalista da narração, mas sim, uma rápida exposição do pensamento bakhtiniano em relação ao gênero secundário, no qual se insere a fábula, objeto deste estudo. Entretanto, acredito que vale uma rápida observação de algumas características do gênero fábula que certamente contribuirão para esta análise.

3.       FÁBULA
Dentre os inúmeros gêneros literários existentes, a fábula está entre os mais antigos. Segundo Coelho (1997, p. 147), a fábula é

Nascida no Oriente, a fábula vai ser reinventada no Ocidente pelo grego Esopo (séc VI a.C.) e aperfeiçoada séculos mais tarde pelo escravo romano Fedro (séc. I a.C.), que a enriqueceu estilisticamente. No séc. XVI, ela foi descoberta e reinventada pó Leonardo da Vinci (mas sem grande repercussão fora da Itália e ignorada até bem pouco tempo). No séc. XVII, La Fontaine reinventou a ‘fábula’ (a partir do modelo latino e do oriental oferecido pelos textos do indiano Pilpay), introduzindo-a definitivamente na literatura ocidental

                Uma característica essencial da fábula é a atribuição de qualidades humanas a animais, para Coelho (1997, p.148) “a peculiaridade que distingue a fábula das demais espécies metafóricas ou simbólicas é a presença do animal, colocado em situação humana e exemplar”, os personagens são assim, “símbolos, isto é, representam algo num contexto universal (por exemplo: o leão, símbolo da força, majestade, poder; a raposa, símbolo da astúcia; o lobo, do poder despótico etc)” (COELHO, 19997, p. 148).
                Por trás da aparente inocência da fábula, há sempre um caráter crítico, além de uma lição de moral, como sugere Góes (1984, p. 144)

A fábula é uma forma literária indireta na exposição de sua expressão, de caráter geralmente crítico, de análise precisa e tradução sintética dos fatos que são tanto objetivos quanto eloqüentes para o entendimento. Transmite a crítica ou conhecimento em forma impessoal, sem tocar ou localizar claramente o fato ou a personagem

O que se percebe é uma certa tendência a amenizar ou mascarar a voz (crítica) do autor por meio do uso de elementos como animais que já possuem uma forte carga semântica, por exemplo, a raposa, que já carrega em si o estigma de ser astuta, esperta, traiçoeira. Assim, ao invés do autor dirigir uma crítica direta à determinada conduta social, a alguém ou a algum grupo que age de forma, digamos, desonesta, ele o faz utilizando a figura da raposa. Desse modo, o autor utiliza uma outra voz para expressar sua crítica e se exime, de certa forma, da responsabilidade por isso, afinal, não foi ele quem disse primeiramente que a raposa é astuta ou desonesta, essa característica já existe num espaço de conhecimento social comum. Percebe-se aqui a forte presença do caráter polifônico do discurso e do dialogismo bakhtiniano: o autor que utiliza a figura da raposa em seu discurso dialoga, na verdade, com todo um conhecimento social adquirido ao longo de gerações e, ao atribuir fala e atitude humanas à raposa, ele a faz dialogar de dentro do texto com o universo exterior que ela representa.
                Um outro aspecto importante a ser levantado em relação ao gênero fábula é a questão da moral, principalmente porque as crianças estão em processo de construção de identidade e, para isso, estão armazenando informações de toda espécie: éticas, morais, familiares, valores enfim que carregarão consigo para sempre. Burgess (2001, p. 09) diz que “um valor é algo que alça nossas vidas acima do nível puramente animal – o nível de conseguir comida e bebida, fazer filhos, dormir e morrer”. 
                Nesse sentido, é de essencial importância levar em consideração o que Bakhtin (1997) chama de “atitude responsiva ativa”, ou seja, devemos estar conscientes de que as crianças, ao lerem, não são sujeitos passivos que recebem as informações exatamente da maneira que o enunciador as concebeu. As crianças interagem com o discurso de forma ativa, criando seus próprios significados, significados esses que são resultado de suas experiências de vida, do diálogo com outros textos, de suas crenças pessoais e de outras influências externas (família, escola, amigos etc). Assim, é importante evitar mensagens duplas, ambíguas, que possam gerar conflito ou dupla interpretação. Sabemos que é próprio do discurso literário ser ambíguo, polifônico, complexo, entretanto, como nos lembra Bakhtin (1997), dominar determinado gênero discursivo implica conhecer os elementos constitutivos desse gênero, dentre esses, a quem se destina tal gênero.  Góes (1984, p. 148), a esse respeito, afirma que as fábulas


Devem reunir um mínimo de condições que não permitam confusões interpretativas naquilo que pretendem ensinar; conceito claro e objetivo, sobriedade narrativa; linguagem depurada de toda terminologia vaga, abstrata, inaccessível à criança.

                “Tom e Jerry”, personagens de desenhos animados, são exemplos disso. Inegavelmente as crianças torcem pelo ratinho, certamente por identificação, o ratinho é menor que o gato (que pode representar o adulto que repreende, que corrige, que persegue), é mais frágil, é mais esperto enfim, assemelha-se mais ao mundo infantil do que o gato. O que as crianças não sabem é que o rato transmite doenças, que é sujo e que, numa visão mais naturalista, dentro da cadeia alimentar, é presa do gato que é o predador e, só faz, seguir seus instintos naturais de sobrevivência. Todos nós, seres carnívoros, alimentamo-nos de seres que matamos, então somos seguramente todos muito cruéis. Não penso que as crianças deveriam odiar o rato e querer seu fim, mas questiono somente os conceitos e preconceitos que estão embutidos nas fábulas em geral.
                Kafka, como já foi dito, rompe com essas idéias fossilizadas a respeito de predadores e presas nas histórias infantis, inverte o fluxo ideológico e permite que o camundongo seja devorado pelo gato, assim, os papéis do estúpido e do esperto invertem-se. O efeito que se tem é de estranhamento em princípio, e de realismo concreto, traços característicos das fábulas kafkianas.

4. DIALOGISMO EM “PEQUENA FÁBULA”
                Fazer uma análise científica de uma obra literária significa situar-me na delicada fronteira de dois discursos, bem como de dois papéis. Falo exatamente do discurso técnico e do discurso artístico e dos papéis de leitor e de analista. Burgess (2001) fala desse tênue limiar entre ciência e arte como se tratando de duas possíveis leituras de uma mesma verdade. O artista e o cientista percebem o mundo e as coisas nele de forma diferente, mas a verdade é uma só, que segundo Burgess (2001, p. 09) é um espetáculo

Que está por trás de um espetáculo exterior (...) O sol se levanta a leste e se põe a oeste. Isso é o que vemos, isso é o “espetáculo exterior”. No passado, o espetáculo exterior era visto como a verdade. Mas então veio um cientista para questiona-lo e enunciar em seguida que a verdade era muito diferente da aparência: a verdade era que a Terra girava e o Sol permanecia imóvel – o espetáculo exterior estava dizendo uma mentira.

Não quero, entretanto, deixar de pensar que todo esse buscar a verdade está carregado de beleza e arte. No fundo, cientista e artista buscam a mesma coisa: a beleza da verdade universal, cada um a seu modo, com seu olhar e sua arte-ciência.
Como já foi dito anteriormente, quero buscar em Stam (1992) os parâmetros norteadores dessa análise: discurso polifônico, polêmica interna oculta, autobiografia polêmica, confissão, discurso que olha de lado e réplica sarcástica. Passo agora a observar cada um desses itens na obra de Kafka

4.1 – Discurso polifônico
       
“Pequena fábula” é um texto polifônico primeiramente por ser entrecruzado por várias vozes. O texto de Kafka é marcado pela presença do discurso direto, na verdade é constituído apenas de um diálogo entre os dois animais (personagens – o gato e o camundongo). A voz do narrador, assim, personifica-se na fala dos animais. Embora o discurso tenha as características próprias do discurso direto (limites ou fronteiras nítidas entre o discurso citado e o discurso que cita), o que se tem na verdade em “Pequena fábula” é uma fala do camundongo que não se dirige ao gato, mas a si mesmo. Marinho (1997), ao analisar os mecanismos enunciativos em “Vidas Secas”, apresenta alguns aspectos importantes em relação ao aspecto polifônico do discurso, aspectos que podemos observar também no texto de Kafka:

a)       Personagem apresentada como uma autoconsciência
Toda a fala do camundongo representa exatamente essa autoconsciência: “Ah – disse o camundongo -, a cada dia o mundo se torna mais estreito. No início ele era tão amplo que eu tinha medo, continuei correndo e fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à direita, muros ao longe, mas esses longos muros correm tão rápido um na direção do outro que já estou no último quarto e ali, no centro, está parada a armadilha para dentro da qual vou correndo”.
Primeiramente em “a cada dia o mundo se torna mais estreito”, percebo a tomada de consciência de que o mundo se estreita, inerente a essa noção, existe uma voz que a entrecruza, podendo ser ao mesmo tempo a voz de uma criança que começa a perceber que o mundo não é feito de fantasia, de sonho, mas sim, de realidade, e que essa nos põe limites todo o tempo, ou a voz social de uma classe reprimida que se arrisca a se perceber como tal.
Em seguida, quando o camundongo diz “mas esses longos muros correm tão rápido um na direção do outro que já estou no último quarto”, percebemos a conscientização em relação ao tempo e ao espaço (cronotopo), assim, o que parecia inicialmente confortável (“fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à direita muros ao longe”) torna-se o motivo de sua preocupação, de sua angústia, é como se o camundongo tomasse consciência de sua situação real e visse que o que ele tinha antes era apenas uma falsa segurança transmitida propositadamente pela voz do dominador que ele carrega gravada consigo inconscientemente.
Finalmente, a percepção de que caminha para uma armadilha: “ali, no centro, está parada a armadilha para dentro da qual vou correndo”. A utilização do verbo no gerúndio representa a continuidade, a progressividade de uma ação; o que significa que, apesar de tomar consciência de que corre para o seu fim, o camundongo não consegue parar . É como se essa conscientização viesse tarde demais, num momento em que já não há o que fazer, que o que resta é aceitar os fatos, o destino, a “cruz” ou qualquer coisa assim, colocada em nosso subconsciente através das gerações e que, como um tabu fossilizado, tornou-se uma verdade inviolável, indiscutível e imutável: ao pobre cabe ser pobre somente.

b)       Representação do homem no momento de crise e de reviravolta de sua alma

Tomar consciência deveria ser um ato de reviravolta, entretanto não é o que acontece em “Pequena fábula”. O camundongo está o tempo todo em crise, é como se o seu falso mundo confortável e seguro estivesse desabando, como se aquilo que se havia mostrado certo fosse na verdade uma projeção de sua mente que assim desejava enxergar e agora, diante da verdade dos fatos o que lhe restava era “dar uma reviravolta”, tomar uma atitude, entretanto, essa reviravolta não vem e o camundongo acaba devorado pelo gato.

c)       Orientação em relação ao discurso do outro e à consciência do outro

O camundongo, como já foi dito, elabora um discurso para si mesmo, é como se ele refletisse e tomasse consciência de uma série de fatos que jamais percebera antes, mas que de nada lhe servirão agora. Do outro lado, temos o gato, que também toma consciência da existência do rato, de seu questionamento e de sua inércia diante de seu destino. O discurso do gato, por sua vez, orienta-se em relação ao do rato, existe, na verdade, para o rato e, soa ao mesmo tempo como um eco da voz do camundongo, como se fosse a conscientização final do que fazer diante de toda a reflexão que ele vinha fazendo e, significa também, uma voz externa, a voz do dominante, aquele que tem o poder para livrar o dominado de seu estado de dominação, mas não o faz, exatamente por ser sua posição a mais confortável. O gato toma consciência das reflexões do rato, mas não reflete em momento algum sobre seu papel, sobre sua própria existência, como se ela toda se resumisse ao simples fato de observar o tolo rato, manipula-lo, devora-lo e, ainda ironicamente, entrar em sua mente e dizer o que ele deveria ter feito: “você apenas precisava alterar a direção da corrida”.
É polifônico, dessa maneira, o discurso, uma vez que se ouve juntamente com as vozes das personagens, vozes sociais representadas pelas personagens, respectivamente as vozes de dominados e dominantes numa sociedade capitalista.

4.2 – Polêmica interna oculta
               
                Todo o discurso do camundongo é fortemente marcado por uma polêmica interna oculta. Ele parece estar diante de acontecimentos reais da vida pela primeira vez e não saber como agir diante deles. Polemiza assim com suas próprias crenças, aquilo que lhe trazia conforto agora lhe serve de armadilha. A percepção de que existe uma armadilha fatal e de que se dirige a ela desencadeia no camundongo uma série de reflexões, entretanto, toda essa polêmica não é suficiente para livra-lo de sua armadilha. O rato parece seguir algum programa, algum comando interno, na verdade, internalizado, porque o que se tem aqui representado é um confronto íntimo entre a voz do rato que toma consciência de si mesmo e uma voz social internalizada: a de que ele é rato e de que ratos são assim mesmo, ratos são apenas o alimento dos gatos. Essa voz última vence e o rato que, embora se perceba inserido nesse jogo de dominador e dominado, prossegue em seu papel de vítima, de fraco.

                4.3 - Autobiografia polêmica

                Como diz a voz da sabedoria popular, a vida toda nos passa diante dos olhos minutos antes de morrer. Assim foi com o nosso personagem. Temos, em uma única fala, a biografia do camundongo. Nasceu, cresceu, criou seus próprios muros, aprisionou-se neles e agora se encaminha para sua própria armadilha. Muitas vezes fazemos isso conosco quando criamos e alimentamos preconceitos, acabamos por nos fechar em paredes virtuais que têm a função de nos manter afastados de tudo aquilo que não gostamos, não aceitamos ou simplesmente não entendemos ou não queremos entender e, no fim, ficamos presos caminhando em direção à nossa própria armadilha.
                Dentro do gato, o rato ainda é um rato, os muros que lhe cercavam deram lugar ao estômago do gato, mas talvez, ele se sinta confortável lá, afinal, já estava habituado a estar preso, a ser guiado; do estômago, segue certamente ao intestino, de lá ao reto e enfim, está livre novamente: eis a metamorfose universal: somos comidos, digeridos e excretados diariamente quando nos deixamos simplesmente dominar e, fazemos reflexões nulas que não nos levam a nada, porque reflexão sem ação é como caminhar pra armadilha: inútil.

4.4 – Confissão

                Mais uma vez, retomo a voz do camundongo, agora a percebo como confissão. O rato nos confessa seu desconforto diante da nova situação que se instaura. Ao mesmo tempo confessa sua passividade diante dela. Confessa saber que caminha para a armadilha e pior, confessa aceita-la como se fosse realmente dela merecedor. Entendo a crítica que Kafka faz às crenças em nós depositadas: acabamos por segui-las tão cegamente que, mesmo ao tomarmos consciência delas, nada fazemos.

4.5 – Discurso que olha de lado
                                                
                Como já foi dito, a voz do rato dirige-se a si mesmo, representa a sonorização de seu conflito interno. Mesmo quando fala da armadilha representada pelo gato, a ação é toda centrada em si mesmo: “a armadilha pra dentro da qual vou correndo”. O discurso do gato, por sua vez, revela-se todo voltado ao do rato. Ele está atento às reflexões do camundongo, aos seus questionamentos, sua tomada de consciência e, finalmente à sua inércia. Ao passo que todo o discurso do rato centra-se na primeira pessoa, característica própria do discurso monológico, a fala do gato apresenta-se com todas as marcas típicas do diálogo (cf. BRANDÃO, 2000): o gato responde ao rato, apresenta sugestões, aponta-lhe o caminho, a saída, mas enfim, segue seu instinto e devora-o.

4.6 – Réplica sarcástica
               
                O último elemento dessa análise diz respeito exatamente à fala do gato. Como já foi dito, seu discurso se volta ao rato, com todas as marcas tradicionais da réplica do diálogo, com um aspecto a mais, uma forte dose de sarcasmo. O gato sabe o tempo todo o que o rato deveria fazer para fugir, sabe mais, sabe que isso seria muito fácil e tranqüilamente possível, entretanto, só se pronuncia no último momento e de forma irônica, apontando o que deveria ter sido feito, quando ele sabe já não ser mais possível faze-lo.

5.       CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi dito anteriormente, o objeto é inesgotável. O texto de Kafka pode servir de tema a inúmeros outros trabalhos/enunciados e cada um será, inegavelmente, único.
O que se buscou aqui foi a percepção da presença do dialogismo bakhtiniano com as múltiplas vozes (polifonia), um discurso polêmico e o uso de réplicas do diálogo cotidiano, dentro do gênero fábula.
Kafka, com seu estilo inconfundivelmente realista e crítico, consegue transmitir o conflito entre classes sociais de forma verdadeira, como deve ser a realidade; com personagens tão comuns em nossas vidas e em nossas histórias infantis e com uma ação que, aparentemente não apresenta nenhuma novidade: um gato que devora um rato. A novidade reside exatamente no dialogismo da obra, na tomada de consciência do rato, em sua polêmica interna, sua confissão e, de certa forma, sua decisão de tomar uma atitude passiva e conformista.
Por tudo que se observou, posso concluir que o texto de Kafka é polifônico, dialoga com o mundo de outros textos e com o mundo da consciência social, que é bastante crítico e que, como em qualquer fábula, carrega uma forte lição, precisamos, apenas, estar bem atentos, para percebe-la claramente.


RESUMO:- Este trabalho busca, à guisa das teorias enunciativas de Bakhtin, analisar o texto “Pequena Fábula” de Franz Kafka, para isso, é preciso uma cuidadosa analise do gênero ao qual o enunciado pertence, além da análise de elementos caracterizadores desse enunciado/gênero, bem como da esfera comunicativa a que pertence esse gênero.
PALAVRAS-CHAVE: dialogismo, discurso, fábula

6.        REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Perspectiva, 1969.
BAKHTIN, M. VOLOCHINOV, V.N.. Marxismo e filosofia da linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: ed. Hucitec, 1995.
_____________ Estética da criação verbal, trad. Maria Ermantina G.G. Fernandes, São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRANDÃO, H. N. Texto, gêneros do discurso e ensino In: CHIAPPINI, L. (coord. Geral) Gêneros do discurso na escola: Aprender e ensinar com textos – vol, 05, São Paulo: Cortez, 2000.

BURGUESS, Anthony. A literatura inglesa – trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 2001.

COELHO, Nelly N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ática, 1997.
GÓES, Lucia P. Introdução à literatura infantil. São Paulo: Pioneira, 1984.
KAFKA, Franz. Nas galerias. Trad. Flávio R. Kothe, São Paulo: Estação liberdade, 1989.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade In: DIONÍSIO, A. P., MACHADO, A. R. , BEZERRA, M. A. (Orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna 2002.
MARINHO, Maria C. Novaes. Transmissão do discurso alheio e formas do dialogismo em Vidas Secas de Graciliano Ramos In BRAIT, Beth (org.). A construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997
SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin / Volochinov / Medvedev. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999.
STAM, Robert. Da cultura literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
                                                                                                                                                                                   



sexta-feira, 10 de maio de 2013

ORALIDADE, ESCRITA E LETRAMENTO: REFLEXÕES CONCEITUAIS EM TORNO DE UMA PERSPECTIVA INTEGRADORA





ORALIDADE, ESCRITA E LETRAMENTO: REFLEXÕES CONCEITUAIS EM TORNO DE UMA PERSPECTIVA INTEGRADORA
Leandro Tadeu Alves da Luz


RESUMO: Este texto tem o objetivo de expor e discutir algumas das principais correntes teóricas que se dispõem a analisar a relação entre oralidade, escrita e letramento, partindo de uma apresentação das principais idéias relacionadas a estes conceitos e sua integração no ensino-aprendizagem de línguas.

PALAVRAS-CHAVE: escrita; oralidade; letramento


ABSTRACT: This text aims to present and discuss some of the main theoretical tendencies which study the relation between orality, writing and literacy, departing from the presentation of the main ideas related to these concepts and their integration to the teaching learning process.

KEYWORDS: writing; orality; literacy

0 – Introdução


Este trabalho tem como objetivo discutir, problematizar enfim a relação entre oralidade, escrita e letramento. Para isso, pretendo buscar nas teorias do letramento e numa visão sociointeracionista da linguagem os subsídios necessários para tal discussão.
As pesquisas sobre a relação entre oralidade e escrita não representam necessariamente um objeto novo que se vislumbra, pelo contrário, já é uma discussão bastante difundida nos meios acadêmicos. Este trabalho visa, assim, reunir elementos diversos advindos de trabalhos envolvendo essa temática com a intenção de projetar para a prática da sala de aula de línguas uma visão de interação e interdependência entre o texto oral e o texto escrito (cf. Marcuschi, 2000) tanto em relação à produção quanto à recepção ou construção de sentidos realizada pelo leitor ou pelo ouvinte; o que acarreta, quero crer, um redimensionamento dos papéis dos interlocutores do discurso escolar[1] bem como da própria prática pedagógica de se ensinar uma língua materna ou estrangeira.
Por anos, o que parece comum nas aulas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa nos ensinos fundamental e médio é uma supremacia do texto escrito em detrimento da oralidade. No ensino de língua materna, vejo este fenômeno como resultante de uma crença antiga bastante difundida na escola dita tradicional de que a norma culta é que deve ser ensinada na escola e que esta só se encontra nos textos escritos e, preferencialmente, pelo menos até algum tempo atrás, nos gêneros literários, tomados muitas vezes como modelos de correção e de bem escrever. A oralidade, pelo que compreendo, o aluno podia aprender em qualquer ambiente, não sendo da escola, a responsabilidade de discutir a organização estrutural ou o contexto de produção, nem os objetivos e funções dessa modalidade textual. Em relação ao ensino de língua estrangeira, acredito que o texto escrito predomina devido, primeiramente, a uma lacuna na formação deste professor que, por vezes não se sente seguro para falar a língua que ensina. Outros fatores, como superlotação das salas, escassez de material didático, falta de programas de formação continuada entre outros contribuem para esse quadro de empobrecimento da linguagem que acaba restrita ao papel. O que vale questionar, diante desse quadro é se, já que a escola vem priorizando a linguagem escrita, se ela o tem feito de forma eficiente, socialmente relevante e significativa para o aluno ou se tem apenas servido de pretexto para se ensinar gramática ou tradução, como se fazia há mais de cem anos atrás (cf. CELANI, 1997).


1. O campo de pesquisa sobre escrita

Sabemos que a língua escrita nasceu com os sumérios há aproximadamente cinco mil anos (CAGLIARI, 1999). O que parece representar uma longa trajetória na historia é, na verdade, bastante curta se pensarmos que o homo sapiens habita a terra há mais de um milhão de anos e que, durante todo esse tempo ele se comunicou via fala, certamente. Fica ainda mais curta se pensarmos que um processo de alfabetização em massa só foi realmente acontecer no fim do século XX (GRAFF, 1995). Ainda em relação ao surgimento da escrita, vale considerar o que afirma Rego (1992, p. 108) sobre o caráter funcional dessa escrita, segundo a autora

Sabemos que historicamente as escritas surgiram funcionalmente. Os sistemas gráficos sejam de natureza pictográfica, ideográfica, silábica ou alfabética não foram inventados para deleite da mente, mas sim para atender a determinados usos de linguagem dentro das sociedades, tais como servir de apoio à memória favorecendo o aparecimento de arquivos comerciais, de leis e de princípios governamentais que podiam resistir à passagem do tempo.

Apesar de tão mais jovem, a escrita representa uma verdadeira revolução na história da humanidade, é possível dizer que o acúmulo de conhecimento humano só se tornou possível graças a essa invenção. Na verdade, não falo de escrita num sentido restrito, ou seja, a escrita alfabética realizada nesta ou naquela língua, mas sim, da idéia abrangente de se registrar de forma permanente e durável fatos, idéias, projetos, sonhos, enfim, tudo que antes apenas se pensava e se dizia. Talvez daí resulte sua supremacia quando se fala em ensino/aprendizagem de línguas.
Acredito ser importante observar a constituição do campo de pesquisa sobre escrita, de acordo com Gnerre (2003), pensar sobre tal questão pode gerar alguma polêmica, poderíamos pensar que o campo de pesquisa sobre escrita tem se expandido nas últimas décadas simplesmente pela crescente preocupação global com questões relacionadas à alfabetização e ao letramento. Por outro lado, como sugere o autor, numa visão um tanto mais crítica, perceberíamos que as pesquisas sobre escrita ganharam destaque como forma de tecnologia sucateada oferecida aos ditos “países de terceiro mundo” quando os detentores do conhecimento e da tecnologia de ponta já passam a entender a escrita como obsoleta. Penso que essa questão merece cuidadosa atenção, entretanto, pelo teor deste trabalho, opto por não ir adiante nessa discussão. Gostaria somente de transcrever o que postula Gnerre (2003, p. 42) sobre a questão do campo de estudos sobre escrita. Segundo o autor

O campo de estudos desenvolveu-se a partir de uma visão evolucionista e mítica da escrita. Evolucionista porque opera a partir do pressuposto da existência de uma série linear de estágios na história da escrita, que, iniciando com símbolos “pictográficos” e “ideográficos”, alcança o nível mais alto de abstração com a escrita alfabética; mítica porque assume que é a escrita, e em especial a escrita alfabética, que representa um avanço substancial numa perspectiva cultural e cognitiva.

            Ainda sobre o campo de pesquisa da escrita, Garcez (1998) apresenta três paradigmas de estudos sobre a escrita, sendo eles: a) experimental/positivista: “[pesquisa] voltada essencialmente para o produto, procura conhecer o crescimento da qualidade do texto escrito por meio, principalmente, do método que utiliza pré-teste e pós-teste” (p. 24); b) cognitivista: “[pesquisas] que tentam desvelar os mecanismos mentais do sujeito, as etapas da escrita, as relações entre as diversas variáveis que interferem no processo de produção do texto” (p. 24) e; c) sociointeracionista: em que “o conhecimento é mediado pelo par mais desenvolvido, que serve de suporte temporário e ajustável, funcionando numa zona sensível de aprendizagem” (p. 42).
Dentro do paradigma de pesquisas denominado por Garcez (1998) como sociointeracionista, uma definição de escrita é sugerida por Bortolotto (2001, p. 10), baseando-se em Geraldi (2002). Assim, para a autora “a escrita (...) é produto da atividade de um sujeito histórico, situado numa comunidade discursiva, o qual tem o que dizer, por que dizer, como e para quem, que conhece e seleciona as estratégias”.
            Garcez (1998) e Gnerre (2003) parecem concordar com a existência de uma visão evolucionista das pesquisas sobre a língua escrita; principalmente quando Garcez (1998, p.23) afirma que

A pesquisa científica sobre a escrita tem evoluído de uma visão centrada no produto para o enfoque dos processos individuais do sujeito cognitivo que produz o texto e, mais recentemente, para o caráter interativo da produção  do texto, ou seja, para os modos de participação do outro nessa produção.

Em relação ao ensino-aprendizagem de escrita realizado na escola, quero chamar a atenção para o que afirma Lopes (1997, p, 29), de acordo com a autora

Tem-se comumente uma prática de escrita que não leva em conta a multiplicidade dos diferentes tipos de escrito e, portanto, requer dos alunos a escrita de composições que não inclui a especificação do tipo de texto, o esclarecimento de aspectos processuais nem a contextualização dos textos (definição de destinatário, de objetivos concretos e de mecanismos de circulação social de textos), uma vez que o aluno escreve para que o produto final seja corrigido e classificado pelo professor.
           
            Essa diferenciação entre escrita e escrito rapidamente apontada por Lopes (1997) é retomada por Rojo (2001), que relaciona escrita à entidade textual genérica e escrito ao aspecto gráfico da língua. Ao falar da relação que se estabelece entre essas categorias, a autora (2001, p. 53) afirma que

A partir do momento em que, com a invenção da imprensa, o autor e o escriba; a grafia e o texto; o escrito e a escrita fundiram-se e confundiram-se, as relações entre esses elementos (a fala, o escrito e a escrita) também se tornaram complexas, exigindo um maior refinamento de análise, nem sempre encontrado quando se fala da escrita e de seu processo de apropriação pelo aprendiz, na relação com a oralidade.
           
Sobre a avaliação do texto do aluno feita pelo professor, assunto também trazido por Lopes (1997)  na citação acima, Suassuna (1995, p. 46) postula que

Pouco se avançará enquanto a avaliação estiver concentrada no produto (texto) e não no processo (ato de redigir), ou enquanto visar apenas à correção ortográfica e gramatical, escamoteando os aspectos textuais (e mais fundamentais) do exercício da escrita

Um pouco mais adiante a autora (1995, p. 52) comenta sobre a matemática injusta das correções textuais, afirmando que
Quem de nós escapou de ter uns pontos subtraídos da redação por causa de um S, um Z, um Ç? Matemática esquisita, por sinal; para cada erro, perdíamos um ponto, para cada acerto devíamos ganhar um. É uma conta desigual e a escola não soma a favor do aluno

Sobre estas questões de correção textual, Geraldi (2002, p. 136) apresenta uma distinção entre produção de texto e redação; para o autor, a redação é feita para a escola e a produção de texto acontece na escola, mas não precisa se limitar a ela. O que parece existir é uma supremacia da redação, o que certamente contribui negativamente para o desenvolvimento das capacidades de expressão escrita do aluno. Um problema apontado por Geraldi (2002) sobre a correção do texto escrito diz respeito ao posicionamento tomado pelo professor. Segundo o autor (2002, p. 143) “o grande problema é que o leitor de redações é sempre a função-professor e não o sujeito-professor”.
Ainda sobre o campo de pesquisa da escrita, Signorini (2001, p. 107) afirma que

Uma questão subjacente aos estudos sobre escrita no campo aplicado tem sido a das aporias do conceito de escrita herdado das tradições lingüísticas fundadas na noção de língua enquanto unidade sistêmica estável que se contrapõe à fala enquanto multiplicidade também sistêmica, porem aberta e instável (a dicotomia saussureana langue/parole e seus desdobramentos)

Pretendo expandir a discussão sobre essa relação por vezes dicotômica, por vezes interdependente entre oralidade e escrita no capítulo que se segue

2. Pesquisas sobre a relação oral/escrito

Seria redundante insistir na importância da implementação da língua escrita para o mundo, também não pretendo aqui nenhuma defesa da oralidade. A esse respeito, concordo com o que postula Tfouni (1995, p 19), segundo a autora “A relação entre a escrita e a oralidade não é uma relação de dependência da primeira à segunda, mas é antes uma relação de interdependência, isto é, ambos os sistemas de representação influenciam-se igualmente”.
É preciso entender, antes de mais nada, que oralidade e escrita são “atividades comunicativas e práticas sociais situadas (...) em ambos os casos temos um uso real da língua” (MARCUSCHI, 2000, p. 21).
Ao refletir sobre uso real da língua, sou levado a pensar em situação de produção e de comunicação. Nessa perspectiva, posso entender comunicação como dialogicidade no sentido bakhtiniano (1997). Acredito, desse modo, ser importante destacar o que Smolka (1993, p. 41), analisando o pensamento de Vygotsky sobre oralidade, fala egocêntrica ou monológica, fala interna e escrita, afirma. Segundo a autora

A fala externa é a fala para os outros. Sua estrutura é estendida, mas pode se abreviar ou ser predicativa dependendo da situação e conhecimento comum entre os interlocutores. A fala interna é a fala para is. Sua estrutura é abreviada e predicativa porque o assunto é sempre conhecido pelo sujeito. Já a fala egocêntrica passa por vários estágios que precedem o desenvolvimento da fala interna: da extensão à abreviação, ela é mediação no percurso da internalização da fala social, marcando a passagem fala-para-o-outro/fala-para-si e a emergência das funções planejadora e auto-reguladora. Quanto à escrita, esta implica a deliberação e a maior explicitação para uma audiência imaginária (é fala externa?) enquanto é monológica (fala para si? Solitária?) na sua produção. Deste modo, Vygotsky mostra que a forma escrita de linguagem e a fala interna são formas monológicas de fala, com funções específicas, enquanto que a forma oral é geralmente dialógica.

O que se observa na afirmação acima é uma visão dicotômica da relação fala/escrita. A autora, ao citar Vygotsky reafirmando que a fala é dialógica e a escrita monológica, reforça uma visão de antagonismo e rivalidade que vai contra o que hoje se coloca como continuum entre oralidade e escrita. Nesse sentido é que vale observar as contribuições trazidas por certas correntes teóricas.
Da pesquisa sobre a relação oralidade/escrita, primeiramente, percebemos uma visão bastante centrada no código e na imanência do fato lingüístico, essa corrente de lingüistas, dentre eles Bernstein (1971), Labov (1972) e Ochs (1979) entre outros (cf. Marcuschi, 2000) defendia a perspectiva da dicotomia, segundo a qual o oral e o escrito não só são diferentes, mas como também antagônicos, como representa o quadro 1, retirado da obra “Da fala para a escrita: processos de retextualização” de Marcuschi, lançado pela Editora Cortez em 2000:

FALA
 ESCRITA
contextualizada
descontextualizada
dependente
autônoma
implícita
explícita
redundante
condensada
Não-planejada
planejada
imprecisa
precisa
Não-normatizada
normatizada
fragmentada
completa

Como conseqüência desses estudos é que emerge a ênfase no estudo da norma culta padrão, daí decorre o desprezo pela oralidade, que representava o desvio, o “não-normatizado”, o erro que deve ser evitado.
O que me parece bastante negativo em relação ao ensino/aprendizagem de línguas é o fato de que, nessa perspectiva, o bom aluno, aquele que escreve bem, é sempre aquele que bem dominar a norma culta. O aluno se sente assim, pressionado a escrever de acordo com uma norma rígida e complexa, o que não parece motivador e nem lhe permite a ousadia da criação, sem a qual o texto não tem vida própria, assim o aluno deixa de ser autor e passa a ser copista ou escriba.
Marcuschi (2000) chama de “visão culturalista” uma segunda corrente de estudos que se opõe de certa forma a esta primeira. Essa abordagem, desenvolvida principalmente por antropólogos, psicólogos e sociólogos, observa, sobretudo as práticas orais e escritas, tecendo análises de cunho cognitivo e epistemológico. Fazem parte desta corrente Walter Ong (1982), Scribner (1997) e Olson (1977) entre outros. Sobre as características atribuídas à fala e à escrita nessa abordagem, gostaria de apresentar um segundo quadro também retirado da obra de Marcuschi (2000) acima descrita:

CULTURA ORAL
CULTURA ESCRITA
Pensamento concreto
Pensamento abstrato
Raciocínio prático
Raciocínio lógico
Atividade artesanal
Atividade tecnológica
Cultivo da tradição
Inovação constante
Ritualismo
Analiticidade

Os estudiosos dessa corrente pensam a escrita como impulsionadora do avanço cognitivo dos indivíduos. Uma vez mais se supervaloriza a escrita, dessa vez, no entanto, fala-se não do texto empírico, mas de sua estruturação macro: psico-socioeconômico-cultural.
Uma terceira corrente, defendida no Brasil por Kleiman (1995), Bortoni (1992, 1995) e Soares (1986), talvez intermediária entre as duas aqui apresentadas, chamada por Marcuschi (2000) de “variacionista”, observa fala e escrita em processos educacionais. Não se trata mais de dicotomizar, mas sim de se fazer uma observação rigorosa da língua em suas variações dialéticas e sociais. Do texto de Marcuschi (2000) trago o seguinte quadro:

FALA E ESCRITA APRESENTAM
Língua padrão
Língua não-padrão
Língua culta
Língua coloquial
Norma padrão
Normas não-padrão

Finalmente, podemos chegar a uma corrente teórica que trata oralidade e escrita como duas modalidades e não dois dialetos, como sugere a corrente apresentada anteriormente. Basicamente dialógica e chamada por Marcuschi (2000) de “sociointeracionista”, apresenta as seguintes características

FALA E ESCRITA APRESENTAM
Dialogicidade
Usos estratégicos
Funções interacionais
Envolvimento
Negociação
Situacionalidade
Coerência
Dinamicidade

                  Apesar de apresentar como vantagens em relação às anteriores a ausência de preconceitos e de ideologias excludentes, essa corrente carece de elementos explicativos quanto aos fenômenos sintáticos e fonológicos, por isso, segundo Marcuschi (2000, p. 33)

A proposta geral, se concebida na fusão com a visão variacionista e com os postulados da Análise da Conversação etnográfica aliados à Lingüística de Texto, poderia dar resultados mais seguros e com maior adequação empírica e teórica. Talvez seja esse o caminho mais sensato no tratamento das correlações entre formas lingüísticas (dimensão lingüística), contextualidade (dimensão funcional), interação (dimensão interpessoal) e cognição no tratamento das semelhanças e diferenças entre fala e escrita nas atividades de formulação textual-discursiva.

            O que Marcuschi (2000) parece propor enfim e chama de “visão interacionista” é, na verdade, a junção de conceitos de várias correntes teóricas. Assim, fica realmente possível abranger todas as peculiaridades específicas da relação oral/escrito. O que fica claro é a incapacidade de se esgotar com uma abordagem teórica todo o entendimento desse complexo emaranhado de fatos sociais, culturais e cognitivos chamado língua que se manifesta em textos escritos e orais.
            Marcuschi (2001, p. 47) em outro trabalho intitulado “Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento”, organizado por Signorini (2001) apresenta uma síntese dos estudos sobre essa relação, segundo o autor:

a)                                           Não há uma dicotomia real entre fala e escrita, seja do ponto de vista de suas práticas sociais ou dos fenômenos lingüísticos produzidos;
b)                                           Fala e escrita são realizações enunciativas da mesma língua em situações e condições de produção especificas e situadas;
c)                                           Letramento é uma prática social estreitamente relacionada a situações de poder social e etnograficamente situada.

Em relação ao item b) acima proposto por Marcuschi, gostaria de acrescentar a afirmação de Kadota (1999, p. 33), pois entendo que essa autora situa a distinção entre oralidade e escrita exatamente quanto às situações e condições de produção. Segundo a autora A fala tem o poder de colocar a língua em permanente estado inaugural pela característica do imprevisível contida em seu processo de exteriorização dos fatos da língua. É, por isso, a responsável pela sua expansão.
Percebo que a autora propõe que a fala e não a escrita, ou pelo menos mais que a escrita, proporciona a evolução da língua; é ela a responsável pelas inovações, pelas transformações que mais tarde poderão ou não serem absorvidas pela escrita.
Ainda sobre o estudo da relação oralidade/escrita vale observar o que afirma Matêncio (2002, p. 26), segundo a autora

No estudo da relação entre oralidade e escrita, alguns autores trabalham com a hipótese de que há um continuum entre as duas modalidades lingüísticas, pois, de sua perspectiva, uma distinção entre as duas modalidades não daria conta dos elementos comuns ou exclusivos de uma ou outra. Outros, acreditam que as modalidades são complementares e estariam vinculadas a uma norma superior, de onde derivariam, o que explicaria, segundo eles, situações em que uma modalidade é mais adequada que a outra.
           
Dentre as marcas de distinção entre fala e escrita propostas pela autora, acredito merecer destaque, na verdade, somente o aspecto físico. Matêncio (2002) afirma que, enquanto a fala se dá por meio sonoro e é percebida pelo ouvido a escrita se manifesta por meios de marcas em um espaço e é percebida pela visão, possuindo maior durabilidade do que a fala. Outros traços como a questão do tempo que se dispõe para elaboração de uma e de outra, ou em relação à situação de produção, em que diríamos que a escrita é um processo solitário, elaborado e a fala não, ou ainda o fato de que a fala se dispõe mais ao trato social enquanto a escrita ao trabalho intelectual (cf. MATÊNCIO, 2002) são elementos já anteriormente expostos nos quadro elaborados por Marcuschi (2001) e entendidos como não suficientes para se compreender a complexidade da relação oral/escrito.




3. Escrita e Letramento

Antes de dar continuidade às discussões sobre a relação entre oralidade e escrita, gostaria de, rapidamente, tecer alguns comentários sobre a relação entre escrita e letramento. Baseado principalmente no que diz Gnerre (2003), posso tratar escrita e letramento como dois processos diferentes, pelo menos em nível conceitual. Segundo o autor

Entre as principais línguas européias somente o inglês dispõe de uma palavra como literacy, que faz referência de forma abstrata a todos os possíveis aspectos de envolvimento social e individual com a prática de escrever. Em outras línguas dispomos de palavras como écriture, schrift, escrita, scrittura, que fazem referência tanto à atividade concreta de escrever quanto ao produto concreto de tal atividade. A palavra inglesa para essas atividades concretas é writing

Assim, posso entender que o letramento diferentemente de escrita se refere à parte abstrata do ato de escrever, vai além do domínio de um código e dos mecanismos de transmissão desse código a um suporte (papel, tela do computador etc). Rojo (2001 in: SIGNORINI op.cit.), por sua vez, baseia-se em Barthes e propõe uma diferenciação entre o escrito e a escrita, segundo a autora, o escrito representa o traço, a grafia, ou seja, para Rojo o escrito representa o que Gnerre (2003) conceituou como escrita. Já a escrita, para Rojo, representa aquela que escreve textos, ou seja, que sai do espaço concreto do contorno das letras para o abstrato das relações sociais que usam a linguagem e, portanto, textos; temos o que Rojo chama de escrita sendo denominado como letramento por Gnerre.
Acredito, desse modo, ser pertinente uma breve discussão do conceito de escrita e de letramento.
Quero adotar, como definição de escrita, aquela apontada por Signorini (2001, p. 126). Segundo a autora

No bojo das práticas de comunicação social, a escrita é compreendida, portanto, como um modo de intervenção na/pela linguagem, numa dada conjuntura sociocultural e histórica, e, portanto, numa dada dinâmica multifacetada e complexa, envolvendo objetivos, recursos e instrumentos variados não só os de natureza propriamente tecno-formal, como o código e as tipologias textuais, por exemplo.

Exatamente por se tratar o letramento de um conceito ainda recente em nossas pesquisas, quero apresentar aqui as definições propostas por alguns autores.


AUTOR
DEFINIÇÕES DE LETRAMENTO
Cavalcanti in: Cox e Assis-Peterson (2003, p. 107)
Letramento é “um conjunto plural de práticas sociais que envolvem modos de falar, interagir, pensar, avaliar e acreditar”.

Kleiman (2003, p. 19)
Trata-se de “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”.

Signorini (2001, p. 8/9)
Letramento é visto “enquanto conjunto de práticas de comunicação social relacionadas ao uso de materiais escritos, e que envolvem ações de natureza não só física, mental e lingüístico-discursiva, como também social e político-ideológica”. 
Signorini (2001, p. 124)





Letramento é o “conjunto de ações e atividades orientadas para a interação social, que envolvem o uso da leitura e da escrita e que integram a dinâmica da vida cotidiana dos indivíduos e dos grupos de uma dada comunidade, ou de diferentes comunidades”.

Soares (1999, p. 47)
“Estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita”.
Tfouni (1995, p. 09)
Letramento “focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita...”.

Tfouni (2001, p. 78)
Letramento está relacionado a um “conhecimento sobre a escrita que as pessoas dominam mesmo sem saber ler e escrever, que é adquirido desde que estas estejam inseridas em uma sociedade letrada”.

Matêncio (2002, p. 44)
Letramento são todas “as interações que se constituem por meio da palavra escrita”.
Sérgio R. Costa (2000,p. 15)


Letramento ligado à “concepção paulofreiriana ampla de alfabetização (Freitre, 1966/10980): desenvolvimento de uma consciência crítica e reflexiva de sujeito, para que ele possa ter acesso à cultura e se liberte como cidadão. Portanto um processo (ou uma prática) social/coletivo de democratização do saber”.
Barton (1994, p. 19)
Letramento visto como “visões mais abrangentes de leitura e de esctira, e que, como tal, é aplicado em diversas disciplinas e em frases como: letramento emergente, usadas em educação”.


O que se observa de comum em todas as definições é a presença da língua escrita em interações ou práticas sociais. Vale destacar que o processo de letramento se diferencia da alfabetização exatamente por esse caráter social. Enquanto no processo de alfabetização o que se objetiva é o domínio da tecnologia ou dos mecanismos para domínio da escrita (grafia, writing para Gnerre ou escrito para Rojo), o letramento ultrapassa esse conhecimento e atinge a instância do social, do uso efetivo e funcional da escrita (cf. Tfouni, 1995). Essa escrita deixa de ser uma simples habilidade motora para tornar-se uma ferramenta de expressão e de conhecimento de mundo.
Segundo Signorini (2001, p. 125) “a filiação do estudo da escrita ao letramento significa, pois, compreende-la não como um objeto único, estático e autônomo, sempre o mesmo em diferentes suportes, momentos e situações”.
Corrêa (2001, p. 137) estabelece uma distinção entre dois “tipos” de letramento, aos quais ele denomina de “sentido restrito” e de “sentido amplo”. Assim, segundo o autor, letramento de sentido restrito consiste na “condição do individuo que exerce direta, ou indiretamente, práticas de leitura e escrita”. No sentido amplo, letramento “liga-se ao caráter escritural de certas práticas, presente mesmo em comunidades classificadas como de oralidade primária (aqueles que não tiveram contato algum com a escrita tal como a conhecemos)”. Corrêa (2001) traz como exemplo desse segundo sentido de letramento o fato de que nessas comunidades, ditas de oralidade primária, o caráter de permanência do registro lingüístico que “independe da tecnologia da escrita alfabética e que vem exemplificado nos estudos de literatura oral” (p. 137)

4. Quando o oral e o escrito se “contaminam”

Sobre a relação oral/escrito, ainda é válido falar do processo de hibridismo, ou como se costuma dizer na escola, da “contaminação” da escrita pelo oral (SIGNORINI, 2001). O hibridismo não é um problema quando se pensa nos usos da escrita em chats na internet, por exemplo, este parece ser um espaço de liberdade de usos de uma escrita profundamente influenciada pela oralidade. Segundo Signorini (2001, p. 98), o hibridismo se instaura como problema quando se trata da escrita de pessoas menos letradas. Para a autora as produções de não ou pouco escolarizados, em suas tentativas de inserção em práticas institucionais letradas, são geralmente percebidas como cópias imperfeitas ou precárias de uma dado modelo, quando não são simulacros do que deveriam/pretendiam ser.
Esses escritos dificilmente são percebidos como dotados de autoria (cf. TFOUNI, 2001) ou como sendo textos mistos, mas merecedores de status de texto como qualquer outro em que tal fenômeno de interferência entre oralidade e escrita ocorra. Signorini (2001, p. 99) postula que tal hibridismo é inerente a toda escrita e o define como sendo o “Imbricamento, conjunção, ou ‘mixagem’ – para usar um termo de Street (1984), não só de formas percebidas como próprias das modalidades oral e escrita, como também de códigos gráfico-visuais, gêneros discursivos e modelos textuais”.
Corrêa (2001), anteriormente citado, estabelece uma relação entre oralidade e letramento, o que ele chama de letramento de “sentido amplo”. Segundo esse autor, essa relação atribui anterioridade histórica às práticas de letramento como as concebemos em nossas sociedades ditas “letradas”, ao mesmo tempo em que cria uma noção de contemporaneidade entre oral e escrito, pois a “oralidade (primária) e letramento são contemporâneos e sua contemporaneidade pode ser constatada pelo modo como os fatos são registrados lingüisticamente” (p. 138). Um outro aspecto que aproxima a fala do escrito, segundo Corrêa (2001) trata-se da permanência no tempo e da mobilidade no espaço. De acordo com seus estudos, o autor observou que em comunidades ágrafas, o relato oral exerce o mesmo papel da escrita em relação a estes fatores, ou seja, o relato oral atravessa o tempo e se locomove no espaço. 
Sobre a relação oralidade/letramento e especificamente a respeito da aquisição da linguagem, Terzi (203, p. 91) afirma que

O desenvolvimento da língua oral e o desenvolvimento da escrita se suportam e se influenciam mutuamente. Nos meios letrados, onde a escrita faz parte da vida cotidiana da família, a construção das duas modalidade se dá simultaneamente: ao mesmo tempo que a criança aprende a falar ela começa a aprender as funções e os usos da escrita, podendo se tornar uma leitora e produtora de textos não-alfabetizada (Heath, 1982, 1983), já com concepções de letramento.                                                        

Desse modo, Terzi (2003) e Corrêa (2001) comprovam a existência de uma relação não apenas entre escrita e letramento, mas também entre oralidade e letramento. Quero, entretanto, adiar esta discussão pra um trabalho futuro.

5. Considerações finais

Diversos outros aspectos sobre a relação entre oralidade e escrita podem ser discutidos, entretanto, em decorrência das circunstâncias de produção deste texto, busquei me aprofundar em questões como a delimitação do campo de pesquisa da escrita, a historicidade das pesquisas sobre a relação oral/escrito, a relação entre escrita e letramento, além de traços de hibridismo entre a fala e a escrita.
            É possível concluir que os estudos sobre a relação oralidade/escrita ou fala/escrita, ou ainda escrita/letramento ou escrita/escrito constituem um objeto rico a ser pesquisado e discutido. Acredito ainda que esta discussão é de suma importância para o processo de ensino/aprendizagem de línguas materna e/ou estrangeira, uma vez que as implicações do oral, do escrito e do letramento se tornam particularmente tensas quando inseridas nesse processo de aquisição e uso social de uma língua.

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[1] Chamo de discurso escolar aquele que se instaura no ambiente de sala de aula